quarta-feira, 7 de setembro de 2016

VOANDO NO MUNDO DO TEATRO III

Continuando a voar no mundo das recordações sou transportado para os primeiros tempos de casado e para o aparecimento dos meus primeiros filhos. Obrigado a pensar mais no trabalho e no aumento dos conhecimentos profissionais, inscrevo-me no curso de contabilidade do Centro de Aperfeiçoamento Profissional do Sindicato dos Empregados de Escritório. Excelente iniciativa daquele Sindicato, dotada de óptimos professores que preparavam os alunos com preciosos conhecimentos de contabilidade, línguas e ainda habilitação para o exame de admissão ao Instituto Comercial. No primeiro ano de frequência, dediquei-me inteiramente ao estudo das várias disciplinas e nem sequer me interessei pela preparação da peça de teatro com que todos os anos encerravam a festa do ano lectivo. Naquelas festas eram premiados os melhores alunos de cada uma das disciplinas e, naquele meu primeiro ano de frequência, existiam, embora ainda do desconhecimento dos alunos, três viagens a Paris, uma para o melhor de línguas, outra para o melhor de contabilidade e outra para o melhor aluno do ano. Não participei na peça daquele ano, o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, mas ganhei o prémio em todas as disciplinas, excepto a de caligrafia, e a viagem para o melhor aluno do ano. Visitar Paris era o sonho da minha vida mas, estive em risco de não o concretizar pois disse que só o podia aceitar se levasse minha mulher, pagando eu a ida dela. Responderam-me que aquelas viagens destinavam-se apenas a sócios frequentadores do Centro. Agradeci novamente mas que não iria sem a minha mulher. E a excepção foi aberta e extensiva a outros interessados. Foram dezanove maravilhosos dias em Paris onde tive ocasião de ver tudo o que, durante tantos anos, havia sonhado. Entre tudo, fiz questão de assistir ao espectáculo daquele extraordinário mimo que era Marcel Marceau e que eu tanto admirava como artista e como homem. Os meus companheiros de viagem, a princípio, não estavam muito interessados mas, como para onde ia um iam todos, acabaram por ceder e, no final, deram por bem empregue esta decisão pois adoraram aquele “Paris que rit, Paris que pleur”. Eu é que ainda não estava satisfeito pois meti na cabeça falar com aquele grande Mestre e, assim, dirigi-me aos camarins, antes do espectáculo, e mostrei o desejo de falar com ele. O porteiro, depois de o contactar disse-me que “Monsieur Marcel Marceau”, na altura, não me podia atender porque estava a preparar-se para o espectáculo mas que, no fim deste, tinha muito prazer em receber-me. Se jamais pude esquecer aquele espectáculo também não esqueço a simpática maneira como fui recebido numa longa conversa em que se falou da arte de mimar, do teatro em França e em Portugal e do actor Luís de Lima que tinha sido seu discípulo. No ano seguinte, continuei os estudos de contabilidade embora, sempre que podia, ia ao teatro. Assim, pude assistir a todas as peças da temporada que Maria dela Costa apresentou na sua primeira digressão a Portugal, no velho Teatro Apolo que já não existe, e que culminou com “A Prostituta Respeitosa” de Jean Paul Sartre, a única peça deste autor autorizada antes do 25 de Abril. Não posso também esquecer aquele tão grande momento de teatro que foi a apresentação no Teatro Nacional de “As Bruxas de Salém” de Arthur Miller. Para a peça de fim do ano, a Drª. Ermelinda, nossa professora de inglês, pensou levar à cena o “Rei Lear” de William Shakespeare. Convidado a ir à sessão de audição e distribuição de papeis é-me dado, para ler, uma fala do Duque da Cornualha mas, ainda não tinha terminado e mandam-me ler outro do Duque de Kent que também não termino pois agora dizem-me para ler uma fala do Lear. Quando termino, a Drª. Ermelinda diz que estava encontrado quem iria fazer o Rei Lear. Felizmente que ela foi convidar Mestre Francisco Ribeiro, que interpretara a personagem há pouco, para encenar e dirigir os ensaios. Ele não só recusou como proibiu, terminantemente, aquela ideia de ir para a frente. Na altura, ainda não conhecia pessoalmente Francisco Ribeiro mas estou-lhe imensamente grato por ter evitado o desaire total que seria se tivéssemos concretizado a ideia. Com o entusiasmo não víamos no que nos estávamos a meter. Escolhemos, então, para peça do fim do ano “O Aniversário do Banco” de Anton Chekov e convidou-se o actor Armando Cortez para a encenar e ensaiar. Vejo-me, assim, a interpretar o papel do director do banco na mesma peça onde tinha sido figurante na homenagem a Manuela Porto. No ano seguinte levámos á cena “A Farsa do Mestre Pathelin”, advogado esperto e ardiloso, que me deu muito gozo fazer e, de tal forma me saíu bem que o meu professor de contabilidade nunca mais me deixou de chamar senão por mestre pathelin. Desta vez, não convidámos ninguém para a encenar e toda a montagem foi feita por mim e pelo Mário Cardoso que possuía grande entusiasmo e talento. Nessa altura, apareceu no Centro, a Maria da Glória que estava empregada na Philips e que tivera algumas intervenções teatrais no grupo daquela empresa. Mostrava grande entusiasmo em entrar mas a peça, na versão que estávamos a montar, não tinha qualquer papel feminino. Mas ela insistia com um desejo tão grande e com tal insistência que resolvemos que ela faria, em travesti, o papel do meu criado e que desempenhou muito bem. A Maria da Glória nunca mais nos deixou e, mais tarde, quando numa reunião de grupos de teatro amador apareceu o encenador Artur Ramos à procura de actores amadores para um espectáculo que ia montar no Teatro Nacional me convidou e eu não aceitei, a Maria da Glória aceitou logo. Depois, pediu uma bolsa à Fundação Gulbenkian, foi estudar para Paris e quando voltou não mais deixou o teatro profissional com o nome artístico de Adelaide João. Presto aqui a minha homenagem a todo o amor e dedicação da Adelaide João pelo teatro a que se entregou de corpo e alma e se ela ainda se lembrar das muitas descomposturas que lhe dei, no seu início connosco, deve compreender que era pela muita amizade que lhe tinha e por ver que poderia ser uma grande artista se o quisesse. No ano seguinte, integrado nas comemorações henriquinas, ensaiámos “As Rosas de Santa Maria” uma peça em verso, já não me lembro de que autor, respeitante à passagem do Cabo Bojador, onde interpretava o papel do Infante D. Henrique. Era nossa ideia representa-la em Lagos, ao ar livre, integrado nos festejos que ali se realizavam. Deslocámo-nos com todo o elenco e guarda-roupa, num autocarro, mas a organização das festas, que havia sido contactada com antecedência e aceite a ideia com agrado, acabou por não arranjar espaço para a representação. Foi um trabalho de vários meses que acabou por nunca ser apresentado. Para e festa final daquele ano, realizado no Teatro Capitólio, li um trabalho sobre o Infante D. Henrique “O sonho de mundos novos” e levámos à cena “O Doido e a Morte” de Raul Brandão. A censura tinha substituído a frase final da peça por “Ai que grande filho da mãe”, mas como isso não tinha a força que todo o diálogo da peça exigia resolvemos que seria dita, mesmo, a frase do autor e que fora cortada: “Ai o grande filho da puta.” O teatro estava definitivamente entranhado na vida do Centro de Aperfeiçoamento Profissional. Havia pessoas interessadas, havia boa vontade por parte da direcção do Centro e havia meios financeiros. Era altura de enveredar por um projecto a sério. É aí que continuaremos a voar, num próximo capítulo, recordando todo o entusiasmo posto na criação do “PROSCÉNIUM”.

Sem comentários:

Enviar um comentário