quinta-feira, 9 de julho de 2009

O SONHO E A OBRA - 1947 - NASCE UM AUTOMÓVEL


Pelas quatro horas da tarde do dia 12 de Março de 1947, na periferia de Maranello, uma pequena localidade a dezoito quilómetros de Modena, começa a escutar-se o trabalhar de um motor, tossicando a princípio, que vai aumentando até nivelar num ronco até então nunca ouvido naquela pequena povoação.
As pessoas que habitavam na vizinhança da fábrica, na Via Abetone, apercebiam-se que se estava ali a fabricar um novo automóvel algo especial.
Quando o ronco feriu o silêncio dos campos, todos compreenderam que havia arrancado um carro que tinha a marca Ferrari e por emblema o "cavallino rampante" de Francesco Baracca.
O carro, ainda despojado de carroçaria, encontrava-se estacionado no canto do patiozito da Via Abetone antes de Enzo Ferrari se sentar a bordo e sair da fábrica virando à direita para se lançar na recta da estrada na direcção de Formigini.
Depois de percorrer alguns quilómetros parou, inverteu a marcha e reentrou na fábrica onde todos o esperavam ansiosamente.Este pequeno episódio era o início de uma aventura extraordinária, que continua ainda hoje passados mais de sessenta anos, cujas bases haviam sido lançadas em meados de mil novecentos e quarenta e cinco quando Ferrari havia chamado Gioachino Colombo e lhe pedira para projectar um carro totalmente inovador e capaz de bater a Alfa Romeo, o carro que tantos sucessos havia conquistado antes da guerra.
Foi escolhida uma arquitectura de um motor de doze cilindros em V a sessenta graus, montados longitudinalmente na dianteira, trabalhando-se muito a partir da memória de Enzo Ferrari que recordava, com fascínio, os grandes Packards e o seu som harmonioso.
Convém lembrar que, embora o primeiro Ferrari tenha nascido como um carro de sport, o objectivo real era a nova classe internacional de fórmula 1 que começava, na altura, a ser estudada.
E quando o campeonato de Fórmula 1 e o seu ramo menor Fórmula 2 foram anunciados, em Outubro de 1947, o Ferrari encontrava-se pronto.

O MOTOR 125

O coração da máquina, para Enzo Ferrari, foi sempre o motor e o coração do motor é a cabeça de cilindros. Assim, esta seria, realmente, a primeira peça a ser projectada.
Colombo completou depois todo o projecto do carro, produzindo quatro desenhos principais, a cores, com características que, observadas após sessenta anos, poderão parecer um pouco ingénuos.
Este estudo demorou algum tempo pois os primeiros desenhos datam de 1946 e são assinados com um C de Colombo mas é muito provável que tivessem sido executados por Luciano Fochi, um desenhador que trabalhara com ele na Alfa Romeo.
O primeiro esboço de chassis é datado de 5 de Junho de 1946, a secção longitudinal do conjunto motor - caixa de velocidades de 10 de Julho e a secção transversal de 5 de Agosto.
O projecto de motor é muito interessante pois combina uma audaciosa solução de doze cilindros em V a 60º, montados longitudinalmente na dianteira, com apenas 1 500 cm3 e uma série de características de grande valor prático com vistas a uma redução de custos.
De começo, como se diz atrás, existia apenas o desenho de uma cabeça de cilindros que, com uma rotação simples de 180º, seria usada para ambos os grupos. Esta foi a carcaça mais complicada de todos os componentes do motor e dividi-la ao meio não foi tarefa fácil.
O bloco apresentava uma distância apreciável de 90 mm entre cilindros para um furo de apenas 55 mm o que significava que estava já prevista a possibilidade de aumento da cilindrada.
A cambota, extraída à máquina de uma barra de aço, tinha sete suportes de apoio e seis de biela.
O bloco de cilindros, a cabeça, o carter e diversos outros componentes foram moldados numa liga de alumínio conhecida como "silumin".
Os pistons de alumínio derretido em molde e depois trabalhados tinham dois segmentos de compressão e dois de óleo.
As bielas de aço tinham 112 mm de comprimento o que dava um curso de 52,5 mm. Este comprimento não mudaria até ao modelo 250 que viria a ter um curso de 58,8 mm. Isto mostra como todo o projecto teve sempre em vista o futuro.
A distribuição era feita através de uma árvore de cames à cabeça, por cada fila de cilindros.
A alimentação de combustível era feita através de três carburadores Webber de duplo corpo.
O radiador de óleo era dotado de uma válvula termóstato que só permitia a passagem do lubrificante morno.
A refrigeração de água era assegurada por uma bomba centrífuga impulsionada pelo dínamo.
O tipo de denominação do motor 125 representa a cilindrada unitária que multiplicada por doze resulta a cilindrada efectiva do motor de 1 500 cm3.
Este sistema de atribuição do nome aos novos automóveis Ferrari que consistia em referir a cilindrada unitária acrescentada por letras para indicar os vários modelos seria usada durante muitos anos, apoiado sucessivamente por outros sistemas.

DESENVOLVIMENTO

Quando o projecto progredia rapidamente, Gioachino Colombo foi chamado de novo pela Alfa Romeo para continuar um estudo que ali havia começado antes da guerra.
Para continuar o seu trabalho, recomendou a Enzo Ferrari um antigo colega de Turim, Giussepe Busso, que iniciou a sua actividade a 1 de Junho de 1946, concluindo o trabalho de desenvolvimento do motor e do carro.
O motor começou a trabalhar no banco de ensaios a 26 de Setembro de 1946 com níveis de potência de aproximadamente 70 cavalos.
A complexa disposição dos 12 em V era responsável não só pela perca de potência como originava quebra de molas e de rolamentos.
Felizmente, Giulio Ramponi, um técnico da Alfa Romeo que havia estado prisioneiro em Inglaterra, durante a guerra, e trabalhara nos motores de aviões na Vanderwell, resolveu o problema.
Utilizando o "Thin Wall", de proveniência britânica, conseguiu solucionar o problema dos rolamentos.
Luiggi Bassi, um dos mais fieis colaboradores de Ferrari, grande perito em estabelecer o ponto dos motores, continuou a trabalhar pacientemente e a desenvolver condições óptimas de carburação e de sincronismo da árvore de cames e os ensaios, no banco, demonstravam que a potência do motor estava melhorando gradualmente.
Entretanto, o chassis tubular havia sido encomendado à Gilco, em Milão, empresa especializada em tubos de aço de alta resistência para a indústria aeronáutica.
O seu titular Gilberto Colombo (que não tinha qualquer parentesco com Gioachino) recordava, mais tarde, a insistência de Enzo Ferrari em ter um chassis rígido mas leve.
A solução encontrada foi uma estrutura formada por duas longarinas cruzadas, ao centro, em X, feitas em tubo de secção oval, o que se veio a transformar, por muitos anos, no projecto clássico dos Ferraris monoposto e de sport, dadas as suas características de resistência e fácil reparação.
Em Dezembro de 1946, o novo carro tinha alcançado um estado satisfatório e, por conseguinte, era necessário contratar um piloto de testes.
A escolha recaiu em Franco Cortese, um "gentlemen driver" de antes da guerra, bom amigo de Enzo que, anteriormente, lhe havia confiado a venda de máquinas e ferramentas fabricadas em Maranello.
A antiga paixão pelas corridas renasceu quando lhe foi oferecida a possibilidade de conduzir a nova máquina.
A confirmação deste convite e verdadeiro contrato baseou-se apenas em duas cartas enviadas por Enzo Ferrari a Cortese, demonstrando como era simples, naqueles tempos, as relações entre o construtor e o piloto.
Encontrado o piloto, era necessário pensar na informação à imprensa e, sobretudo, aos potenciais clientes.
Para isso, foi escolhida uma série de ilustrações que reproduziam o motor, detalhes do chassis, uma transparência da "berlineta" e, ainda, uma folha com as características técnicas.
Todos os projectos foram realizados por Giovanni Cavara, grande especialista de técnica automobilística.
Supõe-se que esta foi a primeira documentação produzida por Ferrari e distribuída à imprensa em fins de 1946 porque os citados projectos foram citados e reproduzidos nas revistas da época.
As características técnicas indicadas na folha diziam respeito a uma "berlineta" de três lugares com mudanças ao volante que nunca chegou a ser produzida.
Com as dimensões de uma grande viatura com 4 500 mm de comprimento, 1 500 mm de largura e de altura e 800 kg de peso.
Evidentemente que o mercado havia sugerido que deviam abandonar esta versão e concentrarem-se nas corridas.
Seguidamente, foi preparado um elegante folheto impresso em papel amarelado coberto pelo "cavallino rampante" e com o título "Programma di fabricazione 1946/47".
No interior, encontrava-se uma folha dupla com o programa e a assinatura de Enzo Ferrari à esquerda e, à direita, um quadro com as características, bem como três modelos de sport, competição e grande prémio, todos tendo em comum o motor tipo 125. Este catálogo era desprovido de fotografias pois, quando foi impresso, a viatura ainda não estava concluída. Logo que isso se tornou uma realidade, foram tiradas algumas fotografias e adicionadas ao catálogo.
Após a decisiva data de 12 de Março de 1947, com que iniciámos este artigo, o trabalho passou a um regime acelerado, sendo o primeiro chassis dotado de uma carroçaria "spider" realizada na fábrica e a segundo de outra mais estreita, tudo a tempo de estar presente na competição a realizar em Piancenza.

FINALMENTE AS CORRIDAS
O Ferrari tinha nascido para correr e as duas unidades do 125, mal ficaram prontas, foram imediatamente inscritas na primeira competição possível no calendário e que era o Circuito de Piancenza realizado a 11 de Maio de 1947, com os pilotos Franco Cortese e Nino Farina.
Como presságio da história desportiva da Ferrari que viria a ser rica em golpes de teatro, Farina não alinhou na grelha por estar descontente com o carro que lhe havia sido atribuído, o 125C e pretender o 125S que Cortese se recusou a ceder.
Por sua vez, Cortese foi obrigado a desistir, quando se encontrava no comando da corrida, por avaria na bomba de gasolina.
Apesar desta má estreia, o sucesso não tardou pois Cortese ganha as seguintes quatro corridas.
- a 25 de Maio, o Grande Prémio de Roma, composto de 40 voltas num total de 137,6 quilómetros corridos nas alamedas em volta das termas de Caracalla, ganhas à média de 88,5 km/h;
- a 1 de Junho, a Taça Faini, em Vercelli;
- a 5 de Junho, o 1º. Circuito de Caracalla, no mesmo traçado do Grande Prémio de Roma;
- a 15 de Junho, o 1º. Circuito de Vigevano.
As duas últimas provas foram disputadas com o 125C.
A 21 de Junho participou, novamente com o 125S, nas Mil Milhas, fazendo equipa com o chefe de mecânicos Adelmo Marchetti, mas foi obrigado a desistir ao fim de 400 quilómetros com a junta da cabeça direita queimada.
Mas os êxitos voltaram com a vitória no III Circuito Automobilístico de Varese, realizado a 29 de Junho.
A 6 de Julho, em Forli, o grande piloto Tazio Nuvolari ganha a Taça Luigi Arcangeli.
Uma semana mais tarde, a Ferrari conquista a sua primeira dobradinha no Circuito de Parma, composto de 30 voltas num total de 90 quilómetros, com Nuvolari em primeiro com o 125C e Cortese em segundo com o 125S.
Os dois carros foram inscritos, mais uma vez, na Taça Biemme, em Florença a 20 de Julho mas, desta vez, com Righetti com o 125S que conquistou o segundo lugar, tendo Cortese desistido por avaria do 125C.
No XVI Circuito de Pescara, realizado a 15 de Agosto e composto de 20 voltas a um traçado de 25,5 km num total de 510, surge, em grande segredo, um novo motor com maior cilindrada instalado numa carroçaria de sport, o 159.
Uma avaria no radiador, obrigou a uma paragem de 20 minutos nas "boxes" mas, graças à potência do motor, Cortese conquista o segundo lugar.
Nuvolari com o 125S, na XX Taça Montenero, em Livorno a 24 de Agosto, é obrigado a desistir por avaria na bomba de gasolina originada pela má qualidade do combustível.
A 28 de Setembro, no Circuito de Modena, Riguetti foi obrigado a parar por mistura de água no óleo mas classifica-se, mesmo assim, em quinto lugar devido ao número de voltas que havia realizado.
Esta corrida marcou o fim dos 125S.
A 12 de Outubro, no Grande Prémio de Turim, o piloto francês Raymond Sommer leva à vitória o primeiro 159C, iniciando-se uma nova etapa.

AUMENTA A CILINDRADA

A passagem do motor 125 para o 159 vem concretizar o objectivo já previsto no projecto de Gioachino Colombo e que consistia num pequeno aumento da cilindrada para chegar aos 1 903 cm3.Com este motor, termina a colaboração de Giuseppe Busso que retorna à Alfa Romeo.
Colombo continuou a trabalhar como consultor e colaborou durante um curto espaço de tempo com Aurélio Lampredi, um técnico da indústria aeronáutica que se juntou à Ferrari.

PRIMEIRO BALANÇO

Pode-se concluir que este primeiro ano foi altamente positivo.Com um total de 17 carros inscritos em 14 competições, o "cavallino rampante" somou sete vitórias absolutas ou de classe, quatro segundos lugares, uma dobradinha e apenas seis desistências.
A fábrica com 10 000 m2 empregou 140 pessoas, um aumento considerável em relação à centena que fabricava as máquinas e ferramentas.
Os compromissos financeiros de Enzo Ferrari eram significativos pois, neste primeiro ano, nem um só carro foi vendido.
As únicas receitas foram provenientes dos prémios das corridas que eram divididas ao meio com os pilotos.
Entretanto, a fábrica começava a crescer e a paisagem circundante a modificar-se.
A saga da Ferrari e do "cavallino rampante" estava lançada.

NOTA - Este "post" é um tradução resumida e livre do capítulo respeitante ao ano de 1947 da obra "L'Opera e il Sogno". Espero que me desculparão quaisquer incorrecções na parte de mecânica originadas pela minha grande ignorância na matéria

Contribuído por Armando de Lacerda , Quinta, 13 de Novembro às 18:58

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