segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

88 ANOS DE VIDA


Oitenta e oito anos de uma vida cheia de altos e baixos, alguns desgostos, mas muitas alegrias, dezenas de peripécias e muitas mudanças, mas no fundo uma vida feliz à qual estou grato.

Os primeiros 37 anos, embora tendo nascido em Beja e com algumas pequenas interrupções, foram passados em Lisboa a cidade onde cresci e que tanto amo.

Ali adquiri os valores de solidariedade e justiça que têm orientado a minha vida, ali adquiri a bagagem cultural, embora pequena, que possuo.

Ali vivi com a companheira com que casei e onde nasceram os meus três filhos.

Ali vi morrerem os Meus Avós e a minha Mãe.

Durante aqueles anos frequentei os teatros, os cinemas, os concertos, as exposições e as livrarias, apurando o gosto pela literatura e pelas artes sem descurar o desporto.

Ali passei os anos difíceis da guerra em que tínhamos de viver com os cartões de racionamento e em que estivemos prestes a ser bombardeados quando pensávamos que estávamos a assistir a exercícios de defesa antiaérea, pesadelo que acabou com alegria de um dia e uma noite na inesquecível manifestação do armistício.

Aos dezoito anos empenhei-me, com todo o entusiasmo que ponho em tudo em que me meto, na campanha para a presidência da república do General Norton de Matos acabando preso pela Pide e “festejando” os meus dezanove anos nos curros do Aljube.

Militei no MUD Juvenil e fiz parte do coro do maestro Fernando Lopes Graça.

Pratiquei vários desportos pelo gosto e não para que me evidenciasse em algum e, durante algum tempo, fui responsável pela secção de andebol do Clube de Futebol Os Belenenses.

Participei em direcções da Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal e da Federação de Campismo de Portugal.

No teatro, criei o Proscenium, Grupo de Teatro do Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório de Lisboa, que ainda hoje existe embora já independente daquele sindicato, que levou à cena alguns dos melhores autores clássicos e modernos.

Num dos meus empregos, criei as condições para que surgisse o Rali Internacional da TAP, hoje Rali de Portugal.

Aos trinta e sete anos, as ironias do destino atiraram-me para Angola e ali estabeleci uma nova vida com minha mulher e filhos e para ali levei todos os meus livros, discos e recordações de família.

Durante oito anos ali vivi, cheio de saudades da minha Lisboa, mas, sempre com o entusiasmo que me movia, criando coisas e amigos.

Durante quatro anos na Companhia Mineira do Lobito e nos outros quatro na Associação Comercial, Industrial e Agrícola do Huambo onde levei à internacionalização a feira de amostras que aquela entidade organizava.

Também ao tomar a direcção das “6 Horas de Nova Lisboa” não descansei enquanto a não internacionalizei e a coloquei no calendário da Federação Internacional de Automobilismo.

A corrida de 1972, última em que fui seu director, é considerada por muitos, entre eles o António Peixinho, como a melhor prova automobilística que se realizou em Angola.

No dia 25 de Abril de 1974 fui interrogado pela última vez pela Pide.

Na véspera dera uma conferência de imprensa anunciando a criação de um grupo de teatro e isso motivara aquele interrogatório pois, segundo dizia o agente, o sr. inspector interessava-se muito por assuntos de teatro e gostava de saber o que é que nós pensávamos levar à cena.

A tão eficaz polícia de informação desconheci que, naquela altura, o seu governo estava a cair e preocupava-se apena com o medo que o teatro lhes provocava,

Naquela terra me senti realizado e ali criei muitos e grandes amigos.

Mas, em 1975, fui obrigado a regressar a Portugal e, aos 45 anos de idade, iniciar uma nova vida começando do zero.

Com a mulher e os filhos, começámos uma nova luta sem emprego, sem casa, sem nada daquilo que havíamos conseguido até ali e apenas com 10 contos de réis no bolso, pois todo o dinheiro que possuía ficara em Angla com o resto das “bicuatas”.

Uma nova etapa se começava, bem difícil de princípio, mas que, com trabalho e entusiasmo, iríamos vencer.

Não em Lisboa, onde pensámos, que iriamos recomeçar, mas em Évora para onde, novamente, a ironia do destino nos atirou e ali acabei por viver a maior parte da minha vida. 

Ingressámos nos serviços do Ministério da Agricultura, ajudámos a montar os serviços administrativos da então criada Direcção Regional do Alentejo e ali terminámos a nossa vida profissional como chefe de repartição.

Durante os anos que vivi naquela cidade, onde ainda tenho a minha casa, fui sindicalista, autarca e militante político, sempre interessado em contribuir para uma melhor sociedade.

Actualmente, vivo reformado, em Marisol na companhia de minha filha e genro que têm a paciência de me aturar e evitam que termine a minha vida numa dessas arrecadações a que, pomposamente, chamam casas de repouso.
Apesar da idade, dou diariamente a minha volta de automóvel, para preocupação do meu filho mais velho que entende que já não devia conduzir.

Das minhas grandes paixões o teatro e automobilismo, restam vivos o Proscenium e o Rali de Portugal.

Ao longo da vida tive o prazer de conviver com grandes nomes da literatura, da pintura, do teatro, da musica, do desporto e da política, criando amizade com alguns deles.

Foi uma vida difícil mas, ao mesmo tempo, fabulosa.

Filhos, netos e bisneto, cada um à sua maneira têm-me dado todo o apoio e companhia que podem.

Apesar da cansado de uma longa vida, só não sou inteiramente feliz porque me falta aquela que sempre me acompanhou com muito amor e dando-me sempre todo o apoio.

Sempre desejei partir antes dela, mas o destino não me fez esta vontade.

A todos os amigos que sempre me apoiaram e ajudaram em tudo que tentei e consegui realizar, aos meus filhos, genro e noras, netos e bisnetos o meu muito obrigado

SEM ELES NÃO TERIA SIDO NADA.

2 comentários:

  1. Sr. Armando Lacerda
    Sou sobrinha do Dr. Isaías Gautier. Por acaso uma das minhas irmãs encontrou o texto que dedicou ao meu tio. A minha Mãe, irmã do meu tio, com a idade de 88 anos, quando lhe mostrámos o texto comentou que o irmão era mesmo assim e que quem tinha escrito aquelas palavras o conhecia realmente muito bem.
    Muito nos honrou a homenagem que prestou a este nosso familiar.
    Desejos de boa saúde,
    Maria Helena Neto

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  2. Querido amigo, adorei ler as tuas memórias que, apesar de muito abreviadas, por natural modéstia, contém o essencial de uma vida rica de conteúdo social e político. Antifascista desde sempre, estiveste preso no Aljube e foste incomodado pela PIDE até ao próprio dia 25 de Abril! O meu profundo respeito. Abraço amigo.

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