segunda-feira, 18 de agosto de 2014

UMA CONFERÊNCIA QUE DEU QUE FALAR

O Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório do Distrito de Lisboa mantinha na Avenida Duque de Loulé um Externato de Aperfeiçoamento Profissional destinado aos seus associados. Tinha dois cursos de quatro anos, um de contabilidade e outro de correspondente, e mantinha ainda algumas disciplinas que permitiam aos interessados preparação para o difícil exame de admissão ao antigo Instituto Comercial de Lisboa. Foi ali que adquiri os conhecimentos de contabilidade que tão úteis foram à minha vida profissional. De dois em dois anos organizavam visitas de estudo ao estrangeiro das quais falarei brevemente pois usufruí de duas: uma a Paris e outra a Itália. No fim do ano escolar era organizada uma festa para distribuição de prémios aos melhores alunos e apresentação de uma peça de teatro pelos alunos. Com o amor que tenho pelo teatro fiz logo parte do elenco no primeiro e segundo ano, aproveitando o entusiasmo de todos para formar um grupo de teatro o “Proscenium” que teve uma longa vida e de que falarei em detalhe oportunamente. Hoje vou lembrar um ciclo de conferências organizado no plano de actividades daquele grupo. Para participarem convidei os dramaturgos Luís Francisco Rebelo e Bernardo Santareno; os actores e encenadores Rogério Paulo e Pedro Lemos; o actor e autor Costa Ferreira; os críticos de teatro Redondo Júnior e Urbano Tavares Rodrigues. Todos acolheram a ideia com entusiasmo o que garantia um ciclo de conferências com muito interesse. Este iniciava-se com o Rogério Paulo seguido, passado uma semana, por Luís Francisco Rebelo, estando a terceira a cargo de Bernardo Santareno. Faltavam poucos dias para o seu início quando, conversando na direcção do Externato sobre o assunto, o escritor e crítico João Palma Ferreira (que a seguir ao 25 de Abril foi militante do PS e director da Biblioteca Nacional) alertou para o perigo daquela iniciativa pois o Rogério Paulo e o Luís Francisco Rebelo eram comunistas. Esta afirmação lançou o receio nos membros da direcção do Externato a ponto de pretenderem cancelar a sua realização. Tal só não sucedeu por, após uma grande discussão, eu teimar que os convites estavam feitos e tomava a responsabilidade pois os receios do Palma Ferreira eram infundados. Acabaram por ceder, embora um pouco receosos, e o Dr. Sousa Borges, director do Centro, perguntou ao Palma Ferreira: "E o Bernardo Santareno?".Esse não tem perigo pois é católico, respondeu o Palma Ferreira. E o ciclo iniciou-se, deu-se a primeira conferência, o Rogério Paulo falou e não houve qualquer problema. Era suficientemente inteligente para ir dizendo o que interessava dar a conhecer sem poder ser acusado de qualquer opção política. Na segunda, com o Luís Francisco Rebelo, também nada de anormal ocorreu até porque ele chegara atrasado, devido a uma demora num julgamento, e despachou a conferência numa leitura bastante acelerada. Dada a rapidez e o conteúdo da matéria esta só foi assimilada pelos mais familiarizados com o teatro. Frau Costa, uma alemã professora daquela língua mas que falava fluentemente português, lamentou-se que julgava dominar a nossa língua mas não tinha entendido absolutamente nada. Para a terceira conferência, o Bernardo Santareno informou-me que ia fazer uma coisa diferente. Esta, que se denominava “A esperança e o desespero no teatro contemporâneo”, seria ilustrada por textos inéditos que ele estava a traduzir e que seriam ditos por um grupo de actores que ele convidara. Esta notícia entusiasmou os responsáveis pelo Sindicato que até queriam pedir ao SNI uma sala no Palácio Foz, ideia que o Bernardo de imediato recusou.As primeiras duas tinham-se realizado nas salas de aulas do Externato que eram relativamente pequenas. Por isso, resolveu-se que a terceira seria na sede do sindicato na Rua do Alecrim. Dois dias antes da sua realização, telefonou-me o Rogério Paulo preocupado porque o Bernardo não estava a ver bem a realidade em que vivíamos e que entre os trechos que lhe dera para dizer se encontrava a esperança marxista de Sholokhov. Ele não tinha problema em dize-lo até porque se fosse incomodado pela Pide podia dizer que, como actor, representava aquilo que lhe dessem para fazer. Mas, preocupava-se que eu, como organizador, pudesse vir a ter problemas. O Bernardo, como sonhador que era, não estava a ver a dimensão do problema e o perigo que todos corríamos, o que me deixou preocupado, mas o Rogério sossegou-me combinando que antes da conferência falaríamos com ele para o demover daquela ideia. Assim, antes do início da conferência expusemos-lhe o problema mas ele reagiu mal justificando que se apresentava a esperança católica tinha de apresentar também a marxista mas se nós não gostávamos retirava aquele texto. Disse isso um pouco agastado. Também um pouco aborrecido com a sua reacção respondi-lhe, pessoalmente até gostava do texto, que ele estava a alhear-se da realidade e punha-me em perigo não só a mim mas a todo um projecto.O Rogério pôs água na fervura sugerindo que segundo estivesse o ambiente do público assim ele diria ou não aquele texto. E assim, perante uma plateia que enchia a sala ficando alguns na escada por já não haver lugar, Bernardo Santareno leu a sua “Esperança e desespero no teatro contemporâneo” ilustrada com trechos inéditos de Brecht, Genet, Claudel, Sartre, Sholokhov e outros que já não recordo, ditos pelos actores Glicínia Quartin, Cremilde Gil, Cândida de Lacerda, Isabel Ruth, João d’Ávila e Rogério Paulo. Viveu-se uma tarde linda de teatro ouvindo-se trechos, que nunca passariam na censura, recheados de poesia e rebeldia que deliciou uma plateia jovem deixando apenas alguns agastados. Lembro-me que um destes era o tesoureiro do sindicato, católico fervoroso tipo rato de sacristia, que em determinada altura tentei acalmar dizendo, quando anunciavam Paul Claudel, que aquele era católico ao que ele vermelho de raiva respondeu que sabia. Quando ouvi Glicínia Quartin no “Lamento de Joana d’Árc” dizer que estava rodeada de padres fornicadores, concluí que “fora pior a emenda que o soneto”. No final, verificámos com satisfação que a iniciativa resultara pois, salvo raras excepções, havia tido grande êxito. No dia seguinte, ao ler o “Diário de Notícias” vi que a notícia era bastante positiva e ri com a forma como começava, mais ou menos assim: “Realizou-se mais uma conferência de teatro do ciclo que o Sindicato de Empregados de Escritório está realizando, feliz iniciativa dos Drs. Sousa Borges e Isaías Gautier”. Eram o director do Externato e o subdirector de “O Escritório”, meus amigos que apoiavam as minhas iniciativas mas que em determinado momento hesitaram face ao alerta do Palma Ferreira. Não eram pessoas para se gabarem daquilo que não faziam e o teor da notícia era certamente uma dedução do comentador face ao entusiasmo que eles haviam demonstrado e nunca resultante de qualquer afirmação deles. Quando no dia seguinte cheguei ao Externato, estava tudo em pé de guerra e furiosos comigo pois a Pide ameaçara-os que só não fechara o Sindicato porque não se verificaram manifestações nem pró nem contra, mas não permitia a continuação das conferências a não ser com os nomes que ela indicava. A brincar, mas um pouco cínico, respondi que não tinha nada a ver com aquilo pois conforme dizia no jornal, que levava comigo, não fora eu o autor daquela iniciativa. Acabámos todos a rir mas disseram-me que teria de convidar os dois nomes que haviam sido indicados para limpar a imagem que aquele ciclo deixara: Couto Viana e Goulart Nogueira, um fascista e um ultra cabecilha das manifestações que haviam sido feitas contra a exibição da “Alma Boa de Setsuan” da Companhia de Maria della Costa e de “À Espera de Godot” do Teatro Nacional Popular de Francisco Ribeiro. Apesar de amigo do Couto Viana e conhecer bem o Goulart Nogueira, recusei-me terminantemente a fazer o convite e quem quisesse que o fizesse mas numa iniciativa já alheia aquela que acabara de morrer. Ninguém os convidou e a iniciativa morreu ali. A maioria dos protagonistas deste episódio já nos deixaram. O Bernardo Santareno viu-o e falámos pela última vez no Teatro Garcia de Rezende na sessão comemorativa do primeiro aniversário da constituição portuguesa em que foi orador. Para aqui desterrado no mato, recordo com saudade as longas conversas qeu tivemos, numa leitaria da Rua Alexandre Herculano ou numa esplanada da Costa da Caparica, sobre teatro, poesia e os conceitos do bem e do mal. Eram conversas encantadores, com a irreverência mesclada de misticismo, mas de uma poesia encantadora que o Bernardo punha em todas as suas palavras. Esta conferência foi um dos seus gestos de rebeldia contra os princípios estabelecidos mas foi igualmente uma extraordinária tarde de teatro transbordante de talento, arte e poesia. OBRIGADO BERNARDO.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

RECORDANDO CORTE REAL PEREIRA

Pequena "estória" de alguém que devia servir de exemplo a todos os que se dedicam ao automobilismo desportivo. Francisco Corte Real Pereira foi um piloto que, depois de ter participado e destacado em algumas corridas em Portugal, se radicou em Angola, sendo a sua presença certa em todas as provas que ali se realizavam. Das provas em Portugal, lembro 1953 em que venceu a I Taça Cidade do Porto, tripulando um ALBA, carro de construção nacional. Em 1954 voltou a alinhar na II Taça Cidade do Porto, novamente em ALBA quando se esperava um grande despique entre os carros daquela marca e os FAP, igualmente de origem nacional. Naquele ano alinhou também no I Grande Prémio do Porto, em Jaguar, tendo desistido em ambas as provas. Também em Vila Real, alinhou em 1949 tendo ganho o I Grupo até 750 cc. Em 1951 e 1952 ficou em sexto nos dois anos e, em 1958, alinhou, de novo em ALBA, na Taça Circuito Internacional de Vila Real, tendo abandonado, e na Taça Cidade de Vila Real, em BMW 507, classificando-se em 3º. Em Angola, o seu amor ao desporto automóvel, o seu espírito de camaradagem e a sua afabilidade de trato granjearam-lhe um amigo em todos quantos com ele conviveram. A sua presença em qualquer prova era sempre desejada e motivo de satisfação para todos os organizadores e concorrentes. O Corte Real era um exemplo do verdadeiro desportista e um apoio para qualquer concorrente, principalmente, para os mais novos. Antes de afinar o seu carro, corria todas as “boxes” prestando a ajuda necessária a quem dela precisasse e só depois se dedicava à sua viatura. Em 1970, Corte Real Pereira esteve, pela última vez, nas “6 Horas de Nova Lisboa” e recordo, como se fosse hoje, a última mudança de pilotos no seu carro. Encontrava-se já muito debilitado e preocupou-me como entrou e pegou no volante para arrancar para a sua última participação, porque entendi que não se encontrava em condições físicas ideais para conduzir. E tão preocupado estava que me encaminhei para o director da prova a fim do aconselhar a que lhe pusesse a bandeira negra obrigando-o a abandonar a prova. Mas, a meio do trajecto, hesitei e desisti pois não tive coragem de ser o autor do abandono de Corte Real Pereira. Obrigá-lo a abandonar era o mesmo que matá-lo com o desgosto que ia provocar a quem tanto amava as corridas e os automóveis. Corte Real Pereira pôde, assim, concluir as suas últimas “6 Horas de Nova Lisboa”. Oito dias depois, viria a falecer, vítima de acidente, quando tripulava o seu Lótus nas “3 Horas da Huila”. Faleceu a fazer aquilo que tanto amava. No ano seguinte, em sua homenagem e para que não fosse esquecido tão grande desportista e apoiante de todos os que se iniciavam nesta modalidade, já como director da prova instituí a Taça Corte Real Pereira, troféu a ser disputado na corrida de iniciados. Ainda hoje perdura a saudade por um companheiro que não voltaremos a ter entre nós mas que, pela sua maneira de estar, devia ser um exemplo para todos quantos se dedicam a este nobre desporto.

sábado, 9 de agosto de 2014

O ESCRITÓRIO

A Federação Regional dos Sindicatos dos Empregados de Escritório do Sul e Ilhas Adjacentes publicava um boletim “O Escritório”, revista trimestral de divulgação técnica e formação profissional. Era uma publicação que se colocava a par das melhores revistas técnicas estrangeiras da especialidade, com uma tiragem de trinta e um mil exemplares, distribuída gratuitamente aos sócios dos 13 sindicatos de empregados de escritório federados e vendida ao público ao preço de 7$50 ou por assinatura anual de 4 números por 24$00, preço um pouco elevado para a altura. O seu subdirector, Dr. Isaías Gomes Gautier, fora o seu principal obreiro a ela dedicando todo o entusiasmo, dinamismo e espírito empreendedor que punha em tudo a que se dedicava. Foi seu primeiro chefe de redacção o meu amigo Nuno de Morais que, por motivos profissionais, teve de abandonar o lugar no fim do seu primeiro ano de existência. Fui então convidado para ocupar aquele lugar o que aceitei com a condição de o boletim ser exclusivamente técnico e se abstrair de quaisquer ligações governativas. Durante três anos, eu e o Dr. Gautier trabalhávamos, depois das horas de serviço, até bastante tarde na elaboração do boletim, trocando ideias sobre os artigos e a composição gráfica, opiniões por vezes diferentes mas sempre coincidentes quanto ao seu conteúdo. Após os serões de trabalho, terminávamos sempre numa cervejaria para comer qualquer coisa e beber umas canecas. Aí, as nossas discussões eram acaloradas pois o Gautier era admirador de Salazar e eu não era. Levava horas a tentar convencer-me das virtudes do regime salazarista e eu a contrariá-lo mostrando todo o mal da ditadura em que vivíamos. No inicio do quinto ano de existência do boletim e depois de três anos a trabalharmos em comum o Dr. Gautier, devido a ter ocupado um cargo directivo na TAP, foi obrigado, por indisponibilidade de tempo, a deixar o cargo que ali desempenhava. Foi substitui-lo alguém com quem pensei que iríamos trabalhar sem dificuldades até porque, nas várias conversas que havíamos tido anteriormente, se tinha sempre mostrado crítico ao regime. Puro engano meu. A tendência era para, sem deixar a divulgação técnica, passar a ser também um órgão de propaganda governamental recheado de palavras de gratidão ao ministro das corporações e previdência social. O nº. 17 de “O Escritório”, primeiro da nova direcção, já não me tinha como chefe de redacção embora, indevidamente, o meu nome ainda lá figurasse. Tinha pedido a demissão por não concordar com a inserção de uma frase de Salazar na contracapa da revista e dos louvores ao ministro. Irtonia do destino. Com um admirador de Salazar consegui trabalhar durante todo aquele tempo; com alguém que se dizia crítico ao regime não foi possível porque não passava de um oportunista. Mais tarde, falando com o Dr. Gautier sobre isto, ele disse-me: “Agora já te posso dizer. Quando informámos o ministério das corporações que ias ocupar aquele lugar, o ministério informou que não eras “persona grata” ao governo. Guardei a carta na gaveta e ocupaste o lugar”. Mais tarde fui também para a TAP e trabalhámos bastante juntos pois ele era o Presidente do Grupo Cultural e Desportivo da TAP. Todas as minhas iniciativas tiveram sempre a sua colaboração e não regateava meios para que elas se pudessem concretizar. Foi assim com o rali, com o grupo de teatro, com a equipa de tiro, com o concurso de pesca desportiva, com as festas de Natal para os funcionários da companhia. Sempre tive o seu apoio e colaboração. Nunca esqueço uma frase que me dizia sempre: “ Meu filho, se o que fizeres for perfeito e grande ninguém pergunta quanto custou. Se fizeres uma merda reclamam um tostão que seja. Apesar da sua admiração a Salazar nunca alinhou com o fascismo nem com os seus métodos. Foi um verdadeiro amigo que recordo com muita saudade.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O MEU AMIGO AFRICANO

A guerra terminara há pouco e o mundo vivia um ambiente de esfuziante alegria. Ao fim de seis tenebrosos anos, a longa noite terminara e, de novo, a paz incutia nos homens a esperança de que os crimes que envolveram a humanidade jamais se repetiriam. Vivia-se ainda no meio dos destroços e da miséria ocasionados pelos crimes originados por uma quadrilha de loucos cegos pela ambição de um monstro que quis dominar o mundo. Mas só o facto deste longo pesadelo ter terminado e o sonho que jamais se poderia repetir dava forças ao povo para, pleno de alegria, se entregar à reconstrução dos seus países. Em Portugal, continuávamos a viver em ditadura mas com a ilusão que o fascismo fora varrido da face da terra e não tardaria que também aqui a democracia chegasse. Também aqui vivíamos um sonho que só muito mais tarde se viria a concretizar. Para que o sonho se tornasse realidade despoletávamos várias iniciativas tendentes a juntar os jovens em jornadas de confraternização e esclarecimento. É uma dessas acções que estou recordando. Um encontro de jovens de Lisboa, Amadora e Queluz perto da Ponte de Carenque. Quando caminhávamos para o local do encontro, conversando e cantando, juntou-se a mim um jovem africano, cerca de seis anos mais velho, que entabulou conversa comigo. Irradiava simpatia com o seu dinamismo contagiante e grande sentido de humor. Em suma com uma enorme capacidade de criar amizades. Disse-me que chegara há pouco a Portugal e que estava a tirar o curso de agronomia. Durante a caminhada e o encontro falámos de mil e uma coisa, numa comunhão de ideias que muito nos aproximou. Depois deste dia, encontrámo-nos várias vezes até porque tínhamos uma amiga comum que vivera algum tempo em minha casa: a poetisa de S. Tomé Alda Espírito Santo. Sensibilizava-me sempre a simpatia, entusiasmo e alegria que punha nas conversas qualquer que fosse o assunto que versasse. Entretanto, deixei de estudar, empreguei-me e passei pela prisão. Ele terminara o seu curso e empregara-se. Não com muita assiduidade, encontrávamo-nos de vez em quando. Mas, em determinada altura, passei bastante tempo sem o ver e sem saber dele. Havia ido trabalhar para a Guiné. Passado tempo, um dia, estava casado há pouco, passeava com a minha mulher quando o revi na Praça D. Estefânia. Tinha vindo a Portugal. Ia bastante apressado mas parou, sempre com a mesma simpatia e alegria, para me falar. Apresentei-o a minha mulher mas ele pediu desculpa de não poder estar mais tempo a falar connosco pois tinha de se apresentar na PIDE e já ia atrasado. Nunca mais o vi, mas fui sabendo da sua actividade em prol da independência do seu país. Mais tarde, soube com tristeza que havia sido assassinado por membros do seu movimento num atentado dos muitos que não tinham resultado. A PIDE tinha colaborado em várias tentativas para o matarem que sempre haviam falhado. Mas, daquela vez, parece que inspirado por Séku Turé, que via nele o impeditivo de realizar o seu sonho de anexar a Guiné-Bissau para criar a “Grande Guiné”, o atentado resultara. Para o mundo, Amílcar Cabral o ideólogo e líder que conduziu a luta do seu povo à independência da Guiné e de Cabo Verde, será sempre o mais esclarecido dirigente africano da sua geração e o principal teórico da luta armada africana de libertação. Para mim será sempre aquele jovem poeta africano alegre e simpático que conheci num encontro de jovens, junto à Ribeira de Carenque.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O FEZ DO QUEIPO DE LLANO

Devia ter os meus sete anos quando se deu o episódio que vou relatar. Meu Pai era gerente do Motor Palácio, estação de serviços propriedade do Engº. Abel Pessoa que ali tinha também o escritório de uma empresa que pretendia criar uma rede comercial de aviação. Era um edifício na Rua Actor Tasso, junto ao Marquês de Pombal, no local onde hoje se ergue um grande edifício. O Engº. Abel Pessoa, grande entusiasta da aviação tirara o brevet e já havia tido um avião (o Águia Branca I) que substituíra por outro maior (o Águia Branca II) com capacidade para cinco pessoas. O seu sonho nunca se veio a concretizar porque, num domingo, quando se dirigia à Figueira da Foz, num voo publicitário daquela ideia, o “Águia Branca II” caiu no mar, perto de Santa Cruz, tendo morrido o engenheiro e os quatro amigos que o acompanhavam. Mas, voltando à nossa história, eu, quando não tinha escola, costumava ir com o meu Pai e ali passava o dia, distraindo-me conforme podia e fazendo, certamente, muitas diabruras próprias da idade. Um dia, em que a estação de serviços se encontrava a abarrotar devido a um encontro que trouxera a Lisboa alguns espanhóis, vagueava por entre os automóveis sem saber o que fazer quando vejo, dentro de um dos carros, um fez vermelho com uma grande borla preta que chamou a minha atenção e me tentou para a asneira. Não tardou que ele não estivesse na minha cabeça mas, não satisfeito e porque aquilo não me satisfazia, não tardou que à falta de uma bola o fez a fosse substituir. E o brilhante chapéu ali andou de reboleta à conta de pontapé para aqui, pontapé para acolá até que meu Pai, vendo aquilo, me fez parar e vi o caso mal parado pois quase que, pela primeira vez e única, ia apanhando. Mas tudo não passou de uma grande “ralhuça” e de uma grande preocupação para meu Pai pois o fez estava cheio de nódoas de óleo. Quando chegou o proprietário do carro, o terrível general Gonzalo Queipo de Llano y Sierra conquistador de Sevilha na Guerra Civil onde granjeou o cognome de “O Carrasco de Sevilha” devido ao massacre que ali fez, meu Pai explicou-lhe tudo que se havia passado, pedindo-lhe imensa desculpa (as coisas que nós fazemos passar aos nossos Pais) e prontificou-se a pagar outro fez. Mas o general, afivelando a sua máscara simpática (todos os tiranos gostam de representar bondade), disse que não tinha importância nenhuma e que até achara graça, fez-me uma festa na cabeça e ainda por cima me premiou com uma grande fotografia que retirou do porta bagagem onde possuía muitas, autografou-a e ofereceu-me para que me lembrasse dele como meu amigo. E aí fui eu para casa, todo inchado com aquela porcaria mas que, naquela idade, tinha um valor incalculável, depositando-a no móvel da casa de jantar para que todos pudessem ver aquela preciosidade e a importância que eu tinha. No dia seguinte, manhã cedinho, mal me levantei corri para ver a minha “querida” fotografia. Oh decepção! Oh tragédia! Que grande desgosto! A fotografia tinha uma barba pintada, e uns óculos e, ainda por cima, os olhos furados. Meu irmão, já na altura antifascista, ao ir deitar-se e ao ver aquele fotografia não descansou enquanto não aliviou a sua reacção de ver tal figurão em nossa casa. Eu barafustei e chorei até me passar o desgosto de ver o estado em que se encontrava aquele meu “GRANDE” amigo. E assim terminou, felizmente, a minha relação com O MEU “AMIGO” FASCISTA