quarta-feira, 15 de outubro de 2014

UMA GRANDE COMPANHIA SONHO DE UMA GRANDE SENHORA

A companhia de teatro Rey Colaço – Robles Monteiro manteve-se em cena durante 53 anos (1921 a 1974) enfrentando toda a espécie de dificuldades, quer económicas, quer da censura, quer ainda das muitas críticas de quem esquecia todas as limitações que defrontavam face a um regime que reprimia a cultura e a arte. Contra mim falo pois, muitas vezes, apesar da muita admiração que tinha por D. Amélia, insatisfeito com o reportório levado à cena e com as condições que se viviam, teci críticas a alguns espectáculos esquecendo todos os bons momentos de teatro que tive o prazer de desfrutar. Quantas vezes descarregávamos naquela companhia, pela sua longa existência, tudo o que sentíamos contra o governo que nos oprimia? Esquecíamos que, por motivos económicos, enquanto representavam uma peça à noite, ensaiavam outra durante o dia pois as despesas eram muitas e não permitiam paragens o que, muitas vezes, o pouco tempo de uma peça em cena não permitia que a seguinte tivesse toda a preparação desejada. Esquecíamos que as imposições da censura os impediam de levar à cena tudo que desejariam. Como a D. Amélia desejou interpretar a Mãe Coragem de Brecht nunca podendo realizar aquele sonho porque a censura não permitia a representação daquele autor. Para se ver como era difícil passar pelas malhas da censura recordamos um pequeno episódio. Num ano em que D. Amélia já não sabia o que levar à cena, face aos cortes da censura, lembrou-se de pôr em cena Romeu e Julieta de William Shakespeare. Mesmo assim, na noite do ensaio para os censores, estes quiseram impedir a representação porque havia relações sexuais entre Romeu e Julieta o que provocou uma grande discussão e a peça só foi à presença do público porque um deles, mais condescendentes, lembrou que os protagonistas, embora secretamente, tinham casado. Contado agora dá vontade de rir e até parece mentira, mas era a situação que se vivia naquela altura. Por muito que se critique não se pode negar que, ao longo dos seus cinquenta e três anos de existência, esta companhia tudo fez pelo teatro, alcançando momentos muito altos, lançando muito novos actores e autores, dando a conhecer muito do que de melhor o teatro criou e levando à cena sempre todos os espectáculos com muita dignidade. É a história desta companhia, que surge na noite de 18 de Junho de 1921 no palco do Teatro S. Carlos com a peça “Zilda” de Alfredo Cortez, que vamos contar. Os seus jovens directores vêm de meios totalmente diferentes mas com um sentimento comum, o seu o amor ao teatro, que os uniu não só na sua vida sentimental como na construção de uma obra a quem o teatro português tando ficou a dever. Amélia Lafourcade Schmidt Rey Colaço, filha do pianista e compositor Alexandre Rey Monteiro, mestre de música do último rei de Portugal, viveu desde criança o ambiente cultural da casa dos pais e dirigia os seus estudos para o violino. Numa temporada passada em Berlim em casa de sua avó materna, em 1913, assiste aos espectáculos de Max Reinhardt que a deslumbram e fazem nascer a sua grande paixão pelo teatro e o desejo de ser actriz. No seu regresso a Lisboa, com o apoio dos pais, recebe lições do grande actor Augusto Rosa e depois de várias apresentações como declamadora, quer acompanhada por seu pai quer pelas irmãs que também eram artistas, estreia-se no Teatro República (actual S.Luiz), a 17 de Novembro de 1917, interpretando Marianela a que se seguem várias temporadas, sempre aclamada pelo público e pela crítica, onde se impõe pela sua grande cultura e talento, tendo sido mesmo convidada para primeira figura de várias companhias espanholas numa temporada que passou naquele país. Ao contrário, Felisberto Manuel Teles Jordão Robles Monteiro nasceu em S. Vicente da Beira a 9 de Setembro de 1888, descendente de uma família da chamada aristocracia rural de fortes tradições clericais, frequentou o Seminário da Guarda onde um bispo, após uma récita escolar, o aconselhou a seguir a sua verdadeira vocação trocando o altar pelo palco. Seguiu o conselho e vai para Lisboa onde frequenta, como voluntário, o Curso Superior de Letras e envereda, inicialmente, pelo jornalismo não tardando a aparecer nos palcos como discípulo dilecto de Augusto Rosa. Estreia-se como profissional no Teatro República na peça “A Caixeirinha” e, dadas as suas potenciais qualidades como organizador e ensaiador, acaba por dirigir já, em 1919, o Teatro Ginásio onde trabalhava Amélia Rey Colaço. Amantes do teatro, ambos discípulos de Augusto Rosa, acabam por casar em Dezembro de 1920 e integram, como societários, a companhia do Teatro Nacional que, na altura, pouco prestígio tinha. É ali que Amélia, desafiando todas as convenções, começa a dar vida a Zilda, a peça de estreia de Alfredo Cortez representativa do esforço de renovação do teatro português, provocando, com excepção do actor e grande mestre do naturalismo António Pinheiro, geral animosidade na acomodada companhia daquele teatro É devido a esta resistência que estes dois jovens, enfrentado toda a espécie de dificuldades, ajudados por António Pinheiro conseguem reunir um bom conjunto e formarem a sua própria companhia que estreia, em pleno verão, no Teatro de S. Carlos o único que se encontrava vago na altura. Em Outubro, promovem a reaparição da grande artista Ângela Pinto mas, por falta de teatros, partem numa longa “tournée” para o Porto de onde só regressam em 1922 para se fixarem, durante quatro anos, no Teatro Politeama onde, depois de um atribulado começo, iniciam a longa vida desta grande companhia que tão importante haveria de ser. Durante os primeiros anos (1921 a 1929) estabelecem-se os princípios que a iriam caracterizar ao longo da toda a sua carreira. Amélia Rey Colaço, como grande actriz que era, afirma-se através de interpretações de êxito certo e, mercê da sua cultura e conhecimento do panorama teatral europeu, encarrega-se também da escolha do reportório e montagem das peças onde põe todo o seu bom gosto, isso sem a impedir de, sempre que julgava necessário, chamar artistas famosos para procederem às decorações, como sucedeu com Raul Lino para decorar a “Salomé”, Almada Negreiros para fantasiar uma revista carnavalesca e Alice Rey Colaço para localizar a “Dama das Camélias” na sua época. Por sua vez, Robles Monteiro começa a apagar-se como actor, dedicando-se mais à marcação das peças e ao ensaio dos actores. É aí que revela toda a sua mestria ao criar uma escola que viria a caracterizar esta companhia e a revelar novos talentos como Raul de Carvalho que se estreou no primeiro espectáculo da companhia, Maria Lalande, Álvaro Benamor e Assis Pacheco. Além disso, dirigia também, com grande eficácia, todo o trabalho técnico e administrativo mantendo uma sólida disciplina no seio da companhia. É assim que, dos predicados destes dois jovens, nasce um conjunto coeso que garantirá o equilíbrio das qualidades artísticas de todos e onde se destacaram, entre outros, Maria Clementina, Emilia de Oliveira e Vital dos Santos. Além do seu elenco próprio, também foram convidados grandes nomes da época como Ângela Pinto, já referida atrás, Palmira Bastos que viria mais tarde a integrar a companhia e o actor brasileiro Nascimento Fernandes. Durante este período (1921 a 1929), a Companhia apresenta trinta e oito peças portuguesas, das quais vinte e duas em estreia, incluindo seis revistas de Carnaval, onde predominam os novos autores Alfredo Cortez, Carlos Selvagem e Ramada Curto; vinte e oito peças francesas, das quais vinte e duas em estreia, escolhidas entre as que mais se destacaram no “boulevard”, critério igualmente seguido nas dezanove peças espanholas, das quais quinze em estreia. A 26 de Novembro 1928, precedido de uma conferência de Ramada Curto, foi apresentado o primeiro Gil Vicente da companhia, no seu Auto Pastoril Português. O reportório daqueles anos foi completado com cinco peças italianas, duas brasileiras e duas americanas. Com excepção de treze atribuídas a António Pinheiro, todas as encenações pertencem conjuntamente a Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. O segundo período da Companhia (1930-1942) inicia-se ao ganharem o concurso para a exploração do Teatro Nacional Almeida Garret (em 1939 é-lhe restituído o nome de D. Maria II) e vão empenhar-se na concretização do programa daquele escritor erguendo um reportório verdadeiramente nacional com ressurgimento dos clássicos há muito esquecidos. Na noite de 30 de Dezembro de 1929, Amélia Rey Colaço devolve aquele teatro, que tão degradado e desprestigiado andava, toda a dignidade e beleza de que era merecedor ao apresentar, perante um espanto geral, a comédia de Marcelino Mesquita “Peraltas e Sécias” onde impera o bom gosto de tudo que punha em cena. O ressurgimento da dramaturgia portuguesa, nesse período, dá-se com a apresentação de cento e dezasseis peças nacionais, sessenta e três em estreia, onde se incluem dez revistas e quatro peças infantis, onde surgem sucessos de novos autores como Carlos Amaro, Armando Vieira Pinto e Virgínia Vitorino. Mas o verdadeiro triunfo foi o aparecimento de quarenta e cinco obras de clássicos portugueses donde se destaca Gil Vicente e passa por Camões, António José da Silva, Correia Garção, Almeida Garret (de quem se festeja sempre o seu dia com Frei Luís de Sousa) e António Ferreira com a única tragédia da literatura portuguesa e que, até então, era considerada irrepresentável, permitindo aos espectadores ver os seus clássicos no palco o que nunca havia sucedido. Mas ainda não satisfeita com isso, Amélia Rey Colaço, cria o ciclo de teatro ao ar livre com o “Auto de Santo António” no adro da Sé de Lisboa, a “Castro” no adro do Mosteiro de Alcobaça, com o primeiro Shakespeare da Companhia “Sonho de uma Noite de Verão” no Parque de Palhavã (onde se situa actualmente a Fundação Calouste Gulbenkian) e ainda com Gil Vicente levado por todo o país. As encenações, em grande parte do casal, tem também a colaboração esporádica de António Pinheiro e Palmira Bastos. Na decoração embora, Amélia Rey Colaço continue a imprimir o seu habitual bom gosto, recorre mais frequentemente a outros artistas que desenham os cenários e figurinos tais como António Soares, Almada Negreiros, Stuart, Eduardo Malta, Jorge Herold e José Barbosa cuja colaboração se torna quase assídua. Na representação, onde a brilhante batuta de Robles Monteiro acentua cada vez mais o estilo próprio desta companhia, brilham as representações de Raul de Carvalho, Maria Lalande, Maria Clementina, Álvaro Benamor e mais espaçadamente Brunilde Júdice e José Gamboa. Mas também, como verdadeira escola que era, despontam novos valores que virão a destacar-se no futuro: João Villaret, Augusto de Figueiredo, Pedro Lemos, Paiva Raposo e ainda, muito novinha, Eunice Munoz. Porém, neste equilibrado conjunto, não é dispensada a presença de grandes nomes da cena como Palmira Bastos, Aura Abranches, Lucília Simões, Alves da Cunha, Nascimento Fernandes, Estêvão Amarante e Samwel Diniz. Do restante reportório, neste período dominado pelos clássicos nacionais, apenas se destacaram Shakespeare e Schiller, pois continuou-se a manter o critério anterior de procurar atrair o público com peças de agrado fácil e, neste panorama, dominaram os dramas franceses vinte cinco sendo dezoito em estreia e as vinte alegres e sentimentais comédias espanholas, das quais quinze em estreia. . Além destas, apenas cinco peças inglesas, duas brasileiras, uma argentina, duas americanas, duas do chileno Armando Moock e três italianas, uma delas, “Sonho Mas Talvez Não” de Pirandello, com o prestígio de estreia mundial e a presença do autor. O público que desconfiava sempre da apresentação de teatro clássico, ocorre em grande número a espectáculos como “Degredados”, “Ciclone”, “Dona Formiga”, “Desencontros”, “Tá Mar” e o sucesso fantástico que foi “Recompensa” de Ramada Curto. Levando à cena os autores clássicos portugueses e, pela primeira vez em 1939, Gil Vicente aos palcos brasileiros, esta companhia fez com que o Teatro Nacional voltasse a cumprir a sua missão. Ao iniciar o novo período de concessão do teatro, 1943 a 1964, e depois de ter cumprido aquele objectivo, é altura de dar a conhecer o grande teatro mundial que inicia ao apresentar a trilogia de Eugene O’Neill “Electra e os Fantasmas”, considerada das obras máximas do teatro americano, na noite de 21 de Fevereiro de 1943. Poucos, fora dos Estados Unidos, se aventuraram a levar à cena este tão difícil espectáculo composto de três tragédias num total de quinze actos com uma complicada montagem e exigindo intérpretes de elevada envergadura. Ao faze-lo, esta Companhia veio mostrar que estava à altura e com disposição de nos dar a conhecer tudo o que de melhor se produziu no teatro mundial. Relega para segundo plano o teatro de “boulevard” tão usado nos anos anteriores e opta por trazer até nós os grandes autores estrangeiros e, assim, entre as dezoito peças francesas representadas, quatro são de Molière revelando também Jean Cocteau e Jean Anouill. Com as vinte e três peças espanholas vem a poesia e a força de Federico Garcia Lorca e Valle Inclán a par dos clássicos Lope de Vega, Calderón, Cervantes e ainda Alejandro Casona, exilado na Argentina. Shakespeare, tão pouco representado em Portugal, é contemplado com quatro peças entre as dezasseis inglesas onde figuram também Oscar Wilde, G. Bernard Shaw e J. B. Priestley. Nas seis peças americanas, além de Eugene O’Neill, surgem Tennessee Williams e Arthur Miller. As seis peças italianas incluem Piradello, Eduardo De Filippo, Diego Fabbri e o clássico Goldoni. Dos autores de língua alemã, até antão de difícil acesso, são revelados Hauptmann, Max Frisch e Durremat, só faltando Berthold Brecht que, apesar do grande desejo de Amélia Rey Colaço de fazer a “Mãe Coragem”, estava proibido pela censura. Juntando a estes ainda os nomes do russo ucraniano Gogol e do sueco Strindberg fica a fazer-se ideia da riqueza que foi o reportório deste período. Mas, com a representação de cento e quatro peças que incluíam trinta e cinco clássicos e a revelação de autores como José Régio, Bernardo Santareno, Luiz Francisco Rebello e Romeu Correia, sem esquecer os consagrados Carlos Selvagem, Ramada Curto e Júlio Dantas que, para a companhia escreveu as suas três últimas peças, o reportório nacional não foi esquecido. Na encenação, embora Rey Colaço e Robles Monteiro assegurem ainda muitos espectáculos, dá-se uma abertura ao exterior onde o alemão Erwin Meyenburg, entre 1944 e 1963, encena quatorze peças quase todas clássicas, o espanhol Cayetano Luca de Tena que entre 1958 e 1970 encena sete e ainda Henriette Morineau, José Tamayo e Michael Benthall. Nos portugueses, com excepção de Francisco Ribeiro e Artur Ramos, os novos encenadores surgem entre os actores da Companhia Varela Silva, Jacinto Ramos, com destaque para Pedro Lemos que, em 1951, assume o cargo de director de cena revelando-se um encenador estudioso e dedicado especialmente aos clássicos. O elenco artístico, cada vez mais coeso, onde brilham Palmira Bastos e Raul de Carvalho, é enriquecido com os nomes de Alves da Cunha, Aura Abranches, Erico Braga, Maria Matos, Eunice Munoz e Vasco Santana, este apenas num espectáculo. Amélia Rey Colaço embora continue a dominar em interpretações que vão da alta comédia à tragédia, começa a espaçar as suas aparições. A escola de actores, proveniente da força da Companhia, continua a revelar ou a dar as primeiras grandes oportunidades a Maria Barroso, Madalena Soto, Carmen Dolores, Lurdes Norberto, Helena Félix, Gina Santos (proveniente do Teatro de Manuela Porto), Rogério Paulo, José de Castro, João Perry, Teresa Mota, Varela Silva e João Mota. Mas a Companhia parece resistir a tudo e continua a trabalhar sem alteração mesmo quando em 1944 é afectada pela saída de quinze elementos, não só actores importantes como Maria Lalande, Lucília Simões e João Villaret como ténicos como o director musical René Bohet , que vão integrar os Comediantes de Lisboa, companhia formada por António Lopes Ribeiro e seu irmão Francisco Ribeiro (Ribeirinho). Em 1958 morre Robles Monteiro que foi o grande ensaiador e administrador e isto afecta o equilíbrio da Companhia obrigando Amélia Rey Colaço a dedicar-se, também, às funções administrativas às quais se mantivera sempre alheia, o que lhe vai absorver muito tempo. Na decoração, embora ainda apareçam colaborações esporádicas de Emilio Lino, José Barbosa e Almada Negreiros, Amélia Rey Colaço encontra no desenhador Lucient Donnat aquele bom gosto que ela sempre imprimira aos espectáculos e encarrega-o, a partir de 1942, da decoração de cenários e figurinos de quase todas as peças. Embora o Teatro Nacional tivesse um público certo que só ali via teatro, existia um certo alheamento do outro público começando-se a sentir um nítido afastamento de espectadores. Mas a Companhia alcança ainda grandes sucessos com “O Leque de Lady Windermere”, “Os Maias”, “As Bruxas de Salem”, “As Árvores Morrem de Pé”, “Prémio Nobel”, “O Processo de Jesus”, “Crime e Castigo”, “A Casa de Bernarda Alba” e “A Visita da Velha Senhora”. Encontrava-se em cena “Macbeth” de William Shakespeare peça que, segundo a superstição teatral, nem sequer o nome se podia pronunciar dentro de um teatro pois originava grandes tragédias. E, infelizmente, a superstição tornou-se realidade com Amélia Rey Colaço. Toda a estabilidade alcançada ao longo dos anos que permitiu a criação de uma companhia que tantos êxitos tiveram, proporcionando ao público espectáculos de grande qualidade, iria ter o seu fim. Na noite de 2 de Dezembro de 1964, um incêndio enorme, além de destruir o interior do teatro, consome o valioso guarda-roupa e cenários de quarenta e três anos de existência da Companhia. A partir desta noite trágica, seriam dez anos de imprevistos de toda a espécie com a passagem por várias salas, nem sempre em boas condições, que mostraram bem a persistência e força de vontade dessa grande Senhora que tudo fez para que a sua grande companhia não morresse. Sem teatro e sem património, Amélia Rey Colaço não esmorece e, apoiada na coesão da sua companhia, não admite paragens e, assim, no dia 15 de Dezembro “Macbeth”, a peça que estava em cena, reaparece no palco do Coliseu dos Recreios num espectáculo único sem cenários e sem guarda-roupa. Foi a forma de Amélia Rey Colaço afirmar a sua persistência e que não desistia pois imediatamente procura outro teatro onde possa actuar enquanto aguarda a reconstrução do teatro que, mal pensava ela, só estaria concluída passados quatorze anos. Com uma renda elevadíssima, consegue arrendar a degradada sala do Teatro Avenida que, com o que havia recebido do seguro e com o bom gosto de Lucien Donnat , transforma numa sala elegantíssima para receber o público na noite de 6 de Fevereiro de 1965. Com a presença do Presidente da República e euforicamente aplaudida, a prever uma rápida recuperação do prestígio alcançado, estreia a peça de Miguel Franco “O Motim”. Mas a peça não agradou ao regime e, assim, passado sete dias, a 13, com uma violência incrível, a polícia política proíbe a peça, sela as portas do teatro e arranca os cartazes. Amélia Rey Colaço, embora abandonada por um público que lhe parecia fiel mas que o era apenas à sala desaparecida, persiste e continua a apresentar as suas peças sempre com a dignidade a que nos habituara. Mas, o anátema de “Macbeth” continua e, quando parecia que o reportório retomava o antigo equilíbrio, na noite de 13 de Dezembro de 1967, de novo, o fogo destrói completamente o Avenida. Continua a não se deixar abater e aluga o Cine-Teatro Capitólio, no Parque Mayer, um espaço muito grande e desconfortável tão diferente daqueles que a Companhia havia tido anteriormente mas onde, apesar de tudo, consegue alcançar o último grande êxito com o “Tango” do polaco Slawomir Mrozek. Depois de cerca de três anos naquele espaço, vai para o Teatro da Trindade, também em más condições pois têm de o repartir com uma companhia de ópera e opereta da F.N.A.T.. Em todos estes atribulados anos e apesar de ter recorrido a algumas peças de êxito fácil, a Companhia apresentou bons espectáculos de elevado nível, como nenhuma outra conseguiu naquele período. Além dos já mencionados “O Motim” e “Tango”, com predomínio do teatro português, apresenta dezanove peças das quais nove em estreia com revelação de duas de Bernardo Santareno e dez clássicas (de novo Gil Vicente com quatro autos apresentados no Teatro de S. Carlos no seu centenário). Francesas foram levadas à cena dez peças com nomes como Ionesco, Camus e Georges Schéade; seis espanholas com peças de Calderon, Fernando de Rojas e Bueno Vallejo; três inglesas dão a conhecer Edward Albee e Harold Pinter; duas brasileiras dando a conhecer Jorge Andrade que escreveu, propositadamente para Amélia Rey Colaço, “Senhora na Boca do Lixo”; e ainda Piradello, De Filippo, Ibsen e Tchekov. Lucien Donnat manteve a decoração e as encenações foram divididas pelos estrangeiros Luca de Tena, José Osuna, Henriette Morineau, Jacques Sereys e Jacques Mauclair (por correspondência) e pelos portugueses Pedro Lemos, Varela Silva, Rogério Paulo, Artur Ramos, Almada Negreiros e Amélia Rey Colaço. O elenco, embora mais reduzido, manteve o estilo a que nos havia habituado e é dominado por Mariana Rey Monteiro. Amélia Rey Colaço chama os seus antigos discípulos Eunice Munoz, João Perry e José de Castro e, mais tarde, Paulo Renato. Também Rogério Paulo, João Mota, Curado Ribeiro e João Guedes regressam à Companhia. O brasileiro Reyes e o popular cómico Costinha tem episódicas aparições. Amélia Rey Colaço faz a sua última aparição como actriz em Adriano II. Palmira Bastos, com 91 anos e cujo o nome bastava ser anunciado para esgotar lotações, aparece, pela última vez, a 15 de Dezembro de 1966, em “Ciclone” na festa de despedida do actor Raul de Carvalho. Em 1974, Amélia Rey Colaço está de novo num teatro digno da sua Companhia, o S. Luiz. A 25 de Abril, a Companhia prepara-se para continuar uma época que estava a ser bem sucedida, ensaiando “Os Desesperados” de Costa Ferreira, peça que havia estado proibida pela Censura e que Amélia Rey Colaço havia conseguido libertar mas que o autor, passado uns dias da revolução, proíbe de ser representada por a considerar inoportuna. Amélia Rey Colaço ainda pensa pôr em cena de novo “O Motim” mas abandonada por grande parte de uma Companhia que parecia coesa e por aqueles em que pensava encontrar apoio desiste e, em Maio de 1974, dá por terminada a actividade da sua Companhia que é extinta oficialmente em 1988, sendo obrigada a leiloar o recheio da sua casa no Dafundo, cedida pela Marquesa Olga de Cadaval, e a abandoná-la. Amélia Rey Colaço morre em Lisboa a 8 de Julho de 1990, junto de sua filha Mariana Rey Monteiro, também já falecida. Com cinquenta e três de existência, a Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, a mais duradoura da Europa, ao longo da toda a sua carreira dignificou o teatro, criando um elenco coeso com um estilo próprio, escola de muitos actores que criaram nome, divulgando toda a dramaturgia nacional e dando a conhecer o mais valioso da dramaturgia estrangeira, tudo isto enfrentando toda a espécie de dificuldades quer económicas quer de liberdade face a uma censura retrógada merece todo o nosso reconhecimento. O Teatro Nacional D. Maria II só em 1978, passados quatorze anos, acaba de ser reconstruido mas nunca mais voltou a ser o que foi durante os anos da permanência daquela Companhia. Com longos períodos fechado, retirando de cena peças com pouco tempo de permanência e lotações esgotadas, destruindo os cenários e impossibilitando assim a sua reapresentação, tendo tido um elenco numeroso, grande parte do tempo inactivo quando teria permitido uma actividade constante de três grupos, um em cena, outro ensaiando novo espectáculo e ainda outro em tournée pela província, com mudanças constante de direcção, tem prestado um péssimo serviço que nos faz recordar com muita saudade aquela prestigiosa companhia. Estas mal alinhavadas palavras são dedicadas à memória de D. Amélia Rey Colaço com toda a minha gratidão por todos os espectáculos a que pude assistir, pela simpatia com que, por duas vezes, me cedeu o seu teatro para apresentação do meu grupo e pelas palavras que me dirigiu quando na estreia do Proscenium subiu ao palco para me felicitar, o que tanto me sensibilizou. Do Teatro Nacional D. Maria II recordo com muita saudade, além dos espectáculos que ali assisti, as conversas que, sentados no palco, tive com a Avó Palmira e os longos serões passados no camarim de Pedro Lemos trocando impressões sobre a actividade do Proscénium a quem ambos dedicámos muito do nosso tempo e entusiasmo. OBRIGADO D. AMÉLIA REY COLAÇO Video em que Amélia Rey Colaço contracena com sua filha Mariana Rey Monteiro Os dados para a elaboração deste texto são de Victor Pavão dos Santos para o catálogo da exposição no Museu do Teatro comemorativa dos setenta anos de teatro de Amélia Rey Colaço

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O AVÔ CÉSAR

Apesar de terem morrido muito antes de eu nascer, tenho pelos meus bisavós uma admiração e apreço muito grandes por tudo que fizeram pelo teatro. Quer da parte da minha Avó, quer do meu Avô, os seus Pais e meus Bisavós estiveram ligados ao teatro e penso, que é por isso, esta paixão tão grande que eu sinto pela Arte de Talma. Daí o desejo de deixar no meu blogue a história deles e, para isso, vou começar pelo Avô César. Augusto César de Lacerda nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1829. De família nobre era, por herança dos seus antepassados, moço fidalgo com exercício no paço. Assentou praça na Armada, como guarda-marinha, ali permanecendo algum tempo, tendo os seus mestres reconhecido nele grandes qualidades de trabalho. Em 1846, quando da Revolução da Maria da Fonte, meu bisavô apresentou-se ao serviço da Junta Revolucionária que se encontrava em Santarém. Terminada a revolução, volta à Escola Naval para continuar os estudos mas, devido a perseguições políticas de alguns professores, vê-se obrigado a abandonar aquele estabelecimento de ensino e assentar praça no 1º. Regimento de Artilharia Montada. Contra vontade, participa na revolução de 6 de Outubro combatendo, no Minho, os seus adeptos, pelo que resolve deixar o exército, sem recompensa alguma pelos serviços militares prestados e, como se nada herdasse de seu pai que tudo perdera nas lutas políticas, faz-se actor entrando para o Teatro D. Maria II, como discípulo do actor Epifânio, estreando-se a 29 de Abril de 1851 na peça “O Cavalheiro Duvernay”. Agradou bastante, mas eram tantos e de tanto mérito os actores que naquela altura faziam parte da companhia, tais como Epifânio, Rosa, Tasso, Teodorico e Sargedas, que dificilmente lhe dariam papeis. Tratou ele dos arranjar escrevendo as peças em que havia de sobressair: a primeira, a comédia em 2 actos “A Assinatura de El’Rei”, que obtém um grande êxito e depois a comédia em quatro actos “Duplice Existência”. No entanto, o reportório do D.Maria era quase exclusivamente composto de pesados dramas e meu bisavô sentia-se mais atraído para a evolução do moderno teatro francês o que o animou a aceitar contrato no Gymnasio onde teve a sua bela época de grande nomeada como actor e principalmente como autor. São dessa época as peças “Cinismo, Cepticismo e Crença” , “Dois Mundos “, “A Última Carta” e outras. Em 1856, constitui-se uma sociedade empresária para o teatro D. Fernando que lhe faz propostas muito vantajosas que meu bisavô aceita e para ali escreve o drama histórico “O Martir” e a ópera cómica “Palavra de Rei”, com música de Bramão e, ainda, a comédia “Cenas de Família”. No fim da temporada, resolve regressar ao Gymnasio onde continuam os seus triunfos com “A Probidade”, “Os Filhos dos Trabalhos”, “Mistérios Sociais”, “A Aristocracia e o Dinheiro”, “Defensor da Igreja” e “Trabalho e Honra”. Em 1861 é convidado a entrar para o Teatro D. Maria, então administrado pelo governo, que aceita pois não podia nem devia recusar a garantia do seu futuro através da assegurada reforma. Ali continua a sua feliz nomeada de actor correcto e autor laureado com as suas peças “As Joias da Família” e “Os Homens do Mar”. Em Junho de 1863 resolveu finalmente a partida, tantas vezes anunciada,para o Brasil onde é recebido entusiasticamente. Ali se uniu à actriz Carolina Falco com quem casou no Pará e de que tiveram dois filhos: meu Avô Carlos e meu tio-avô Augusto. No seu regresso a Lisboa, em 1869, é contratado juntamente com sua mulher, pela empresa Santos para o Teatro do Príncipe Real onde leva à cena mais dois originais seus: “O Monarca das Coxilhas” e “Harpa de Deus”. Terminado este contrato, em 1870, associa-se com Manuel Machado e com o Cruz do guarda-roupa par explorarem o Gymnásio onde leva à cena outra peça, “Os Homens que Riem”. Vai depois passar alguns meses ao Porto e regressa, de novo, para o Teatro D. Maria onde põe em palco as peças: “Os Viscondes de Algitão”, “Homens e Feras”, “O Botão de Âncora” e “Asmodeu”, peça que foi premiada. Algumas das muitas peças que escreveu foram publicadas em livro, das quais se destaca “A Grilheta Moral”, que ainda trabalhou mas que já não foi representada. Mais tarde, voltou ao Brasil onde esteve gravemente enfermo e de onde voltou impossibilitado de trabalhar. O Avô César foi um actor-autor que teve a sua época como poucos, conhecendo muito público e prestando serviços importantes ao teatro quer como escritor de todos os géneros desde o ligeiro, à comédia, ópera e drama, quer ainda como empresário e ensaiador. Representou em quase todos os teatros portugueses e fez várias “tournées” tanto no país como no estrangeiro. Entre outras, possuía as seguintes condecorações: Ordem de Cristo pelo seu mérito artístico e pelos actos de filantropia praticados em favor dos seus companheiros desvalidos; Ordem de Santiago pelo seu merecimento, manifestado na composição de muitas obras dramáticas; cavaleiro da Ordem de Isabel A Católica de Espanha, pelo êxito das suas peças que foram traduzidas e representadas em Madrid, como “A Probidade” com o título de “La Fragata Belona”, “Dois Mundos “ com a designação de “Los Peccados del Siglo XIX” e “Cinismo, Ceptismo e Crença” que foi representada em Cádis, com o mesmo nome. Foram-lhe conferidos ainda muitos diplomas de sociedade de beneficência e literárias do Brasil e de Portugal, dos hospitais portugueses e do Rio de Janeiro, Pernambuco, Baía, Porto Alegre e Pará, entre outros. Foi sócio benemérito de Filantropia da Associação Académica de Coimbra e membro do Grande Oriente Brasileiro, num grau elevado. Morreu a 1 de Janeiro de 1903, deixando o seu nome bem ligado à história do teatro, mostrando que valeu a pena quando optou por deixar uma carreira militar por outra muito mais válida: A VIDA ARTÍSTICA.

sábado, 4 de outubro de 2014

RECORDANDO A CASA DE FADOS “A CESÁRIA”

Na paz dos campos, onde tenho vivido os meus últimos tempos, dou comigo a recordar, com uma saudade tão grande que até dói, toda uma vivência, um pouco agitada mas muito rica, que me proporcionou tantos e tantos momentos de alegria e felicidade. “Passou tudo tão depressa” lamentava a minha querida companheira nos seus últimos anos de vida e como é verdade. Como eu recordo as noites de Lisboa cheias de encanto, os conhecimentos e amigos dos mais variados quadrantes com que convivi ao longo dos anos e como eu desejava poder viver tudo outra vez. Como se tal fosse possível e, mesmo que fosse já nada seria como dantes. Lisboa já não é o que foi, os amigos e conhecidos já abalaram quase todos, eu já não aguento aquelas noites em que me bastava dormir dez minutos para recuperar e, principalmente, já não tenho junto de mim aquela que era a razão de todo o meu ser e enchia toda a minha vida de felicidade. Mas tudo isso não impede que continue a recordar, e cada vez com mais frequência, toda a vivência que tive a felicidade de usufruir. E nestas recordações, hoje, lembrei-me de “A Cesária” aquela simpática casa de fados que também já pertence ao passado pois já não existe. De todas as casas de fados que conheci, esta foi sempre aquela de que mais gostei. Era na Rua Gilberto Rola, em Alcântara, onde já no século XIX tinha existido uma tasca na qual, reza a tradição, teria cantado pela última vez, em 1877, Maria Cesária. Já no século XX, foi uma casa de prostituição e, como possuía dois andares, esta passou para o primeiro andar por onde se entrava por uma porta independente, passando o rés-do-chão a uma casa típica, que se denominava “Casa A Cesária”, onde se comiam petiscos e se ouvia cantar o fado. Quando as casas de prostituição foram proibidas, o proprietário consegue licença para fazer obras de ampliação e o primeiro andar é aberto fazendo como que uma varanda para o andar de baixo o qual passou a dar a ideia de um pátio lisboeta. Quer pela decoração, quer pelo ambiente, passou a ser um lugar castiço onde quem servia às mesas também cantava o fado assim como qualquer dos presentes se o desejasse. Abria todos os dias e a maior parte das vezes tinha a lotação esgotada até quase de madrugada. Ao recordar “A Cesária” lembro-me de um episódio que ainda hoje me faz rir, embora os intervenientes não lhe devessem encontrar qualquer graça. O dramaturgo espanhol Alfonso Sastre passou em Lisboa a caminho do México, onde ia passar a sua lua-de-mel. O casal jantou com o Bernardo Santareno que os convidou a irem ouvir o fado à “A Cesária”. Durante a actuação de uma fadista, um individuo com ares de “marialva” começou com dichotes e o Bernardo Santareno mandou-o calar com um “tchiu”. O individuo, com um ar provocante, virando-se para o Bernardo disse-lhe: “O que é que queres? Se queres alguma coisa tira os óculos”. E, para azar e num gesto que ninguém pensaria, o Bernardo tirou mesmo os óculos. Resultado: uma cena de pancadaria que terminou com todos na esquadra de Alcântara onde os noivos passaram a sua noite de núpcias seguindo, de manhã num carro da polícia o chamado "creme nívea", da esquadra para o aeroporto a caminho do México. É de tudo isto que eu tenho saudades aqui na pacatez dos Foros do Queimado. QUE É IMPOSSÍVEL VOLTAR AO PASSADO … É! MAS QUE GOSTAVA … GOSTAVA!