quarta-feira, 15 de outubro de 2014

UMA GRANDE COMPANHIA SONHO DE UMA GRANDE SENHORA

A companhia de teatro Rey Colaço – Robles Monteiro manteve-se em cena durante 53 anos (1921 a 1974) enfrentando toda a espécie de dificuldades, quer económicas, quer da censura, quer ainda das muitas críticas de quem esquecia todas as limitações que defrontavam face a um regime que reprimia a cultura e a arte. Contra mim falo pois, muitas vezes, apesar da muita admiração que tinha por D. Amélia, insatisfeito com o reportório levado à cena e com as condições que se viviam, teci críticas a alguns espectáculos esquecendo todos os bons momentos de teatro que tive o prazer de desfrutar. Quantas vezes descarregávamos naquela companhia, pela sua longa existência, tudo o que sentíamos contra o governo que nos oprimia? Esquecíamos que, por motivos económicos, enquanto representavam uma peça à noite, ensaiavam outra durante o dia pois as despesas eram muitas e não permitiam paragens o que, muitas vezes, o pouco tempo de uma peça em cena não permitia que a seguinte tivesse toda a preparação desejada. Esquecíamos que as imposições da censura os impediam de levar à cena tudo que desejariam. Como a D. Amélia desejou interpretar a Mãe Coragem de Brecht nunca podendo realizar aquele sonho porque a censura não permitia a representação daquele autor. Para se ver como era difícil passar pelas malhas da censura recordamos um pequeno episódio. Num ano em que D. Amélia já não sabia o que levar à cena, face aos cortes da censura, lembrou-se de pôr em cena Romeu e Julieta de William Shakespeare. Mesmo assim, na noite do ensaio para os censores, estes quiseram impedir a representação porque havia relações sexuais entre Romeu e Julieta o que provocou uma grande discussão e a peça só foi à presença do público porque um deles, mais condescendentes, lembrou que os protagonistas, embora secretamente, tinham casado. Contado agora dá vontade de rir e até parece mentira, mas era a situação que se vivia naquela altura. Por muito que se critique não se pode negar que, ao longo dos seus cinquenta e três anos de existência, esta companhia tudo fez pelo teatro, alcançando momentos muito altos, lançando muito novos actores e autores, dando a conhecer muito do que de melhor o teatro criou e levando à cena sempre todos os espectáculos com muita dignidade. É a história desta companhia, que surge na noite de 18 de Junho de 1921 no palco do Teatro S. Carlos com a peça “Zilda” de Alfredo Cortez, que vamos contar. Os seus jovens directores vêm de meios totalmente diferentes mas com um sentimento comum, o seu o amor ao teatro, que os uniu não só na sua vida sentimental como na construção de uma obra a quem o teatro português tando ficou a dever. Amélia Lafourcade Schmidt Rey Colaço, filha do pianista e compositor Alexandre Rey Monteiro, mestre de música do último rei de Portugal, viveu desde criança o ambiente cultural da casa dos pais e dirigia os seus estudos para o violino. Numa temporada passada em Berlim em casa de sua avó materna, em 1913, assiste aos espectáculos de Max Reinhardt que a deslumbram e fazem nascer a sua grande paixão pelo teatro e o desejo de ser actriz. No seu regresso a Lisboa, com o apoio dos pais, recebe lições do grande actor Augusto Rosa e depois de várias apresentações como declamadora, quer acompanhada por seu pai quer pelas irmãs que também eram artistas, estreia-se no Teatro República (actual S.Luiz), a 17 de Novembro de 1917, interpretando Marianela a que se seguem várias temporadas, sempre aclamada pelo público e pela crítica, onde se impõe pela sua grande cultura e talento, tendo sido mesmo convidada para primeira figura de várias companhias espanholas numa temporada que passou naquele país. Ao contrário, Felisberto Manuel Teles Jordão Robles Monteiro nasceu em S. Vicente da Beira a 9 de Setembro de 1888, descendente de uma família da chamada aristocracia rural de fortes tradições clericais, frequentou o Seminário da Guarda onde um bispo, após uma récita escolar, o aconselhou a seguir a sua verdadeira vocação trocando o altar pelo palco. Seguiu o conselho e vai para Lisboa onde frequenta, como voluntário, o Curso Superior de Letras e envereda, inicialmente, pelo jornalismo não tardando a aparecer nos palcos como discípulo dilecto de Augusto Rosa. Estreia-se como profissional no Teatro República na peça “A Caixeirinha” e, dadas as suas potenciais qualidades como organizador e ensaiador, acaba por dirigir já, em 1919, o Teatro Ginásio onde trabalhava Amélia Rey Colaço. Amantes do teatro, ambos discípulos de Augusto Rosa, acabam por casar em Dezembro de 1920 e integram, como societários, a companhia do Teatro Nacional que, na altura, pouco prestígio tinha. É ali que Amélia, desafiando todas as convenções, começa a dar vida a Zilda, a peça de estreia de Alfredo Cortez representativa do esforço de renovação do teatro português, provocando, com excepção do actor e grande mestre do naturalismo António Pinheiro, geral animosidade na acomodada companhia daquele teatro É devido a esta resistência que estes dois jovens, enfrentado toda a espécie de dificuldades, ajudados por António Pinheiro conseguem reunir um bom conjunto e formarem a sua própria companhia que estreia, em pleno verão, no Teatro de S. Carlos o único que se encontrava vago na altura. Em Outubro, promovem a reaparição da grande artista Ângela Pinto mas, por falta de teatros, partem numa longa “tournée” para o Porto de onde só regressam em 1922 para se fixarem, durante quatro anos, no Teatro Politeama onde, depois de um atribulado começo, iniciam a longa vida desta grande companhia que tão importante haveria de ser. Durante os primeiros anos (1921 a 1929) estabelecem-se os princípios que a iriam caracterizar ao longo da toda a sua carreira. Amélia Rey Colaço, como grande actriz que era, afirma-se através de interpretações de êxito certo e, mercê da sua cultura e conhecimento do panorama teatral europeu, encarrega-se também da escolha do reportório e montagem das peças onde põe todo o seu bom gosto, isso sem a impedir de, sempre que julgava necessário, chamar artistas famosos para procederem às decorações, como sucedeu com Raul Lino para decorar a “Salomé”, Almada Negreiros para fantasiar uma revista carnavalesca e Alice Rey Colaço para localizar a “Dama das Camélias” na sua época. Por sua vez, Robles Monteiro começa a apagar-se como actor, dedicando-se mais à marcação das peças e ao ensaio dos actores. É aí que revela toda a sua mestria ao criar uma escola que viria a caracterizar esta companhia e a revelar novos talentos como Raul de Carvalho que se estreou no primeiro espectáculo da companhia, Maria Lalande, Álvaro Benamor e Assis Pacheco. Além disso, dirigia também, com grande eficácia, todo o trabalho técnico e administrativo mantendo uma sólida disciplina no seio da companhia. É assim que, dos predicados destes dois jovens, nasce um conjunto coeso que garantirá o equilíbrio das qualidades artísticas de todos e onde se destacaram, entre outros, Maria Clementina, Emilia de Oliveira e Vital dos Santos. Além do seu elenco próprio, também foram convidados grandes nomes da época como Ângela Pinto, já referida atrás, Palmira Bastos que viria mais tarde a integrar a companhia e o actor brasileiro Nascimento Fernandes. Durante este período (1921 a 1929), a Companhia apresenta trinta e oito peças portuguesas, das quais vinte e duas em estreia, incluindo seis revistas de Carnaval, onde predominam os novos autores Alfredo Cortez, Carlos Selvagem e Ramada Curto; vinte e oito peças francesas, das quais vinte e duas em estreia, escolhidas entre as que mais se destacaram no “boulevard”, critério igualmente seguido nas dezanove peças espanholas, das quais quinze em estreia. A 26 de Novembro 1928, precedido de uma conferência de Ramada Curto, foi apresentado o primeiro Gil Vicente da companhia, no seu Auto Pastoril Português. O reportório daqueles anos foi completado com cinco peças italianas, duas brasileiras e duas americanas. Com excepção de treze atribuídas a António Pinheiro, todas as encenações pertencem conjuntamente a Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. O segundo período da Companhia (1930-1942) inicia-se ao ganharem o concurso para a exploração do Teatro Nacional Almeida Garret (em 1939 é-lhe restituído o nome de D. Maria II) e vão empenhar-se na concretização do programa daquele escritor erguendo um reportório verdadeiramente nacional com ressurgimento dos clássicos há muito esquecidos. Na noite de 30 de Dezembro de 1929, Amélia Rey Colaço devolve aquele teatro, que tão degradado e desprestigiado andava, toda a dignidade e beleza de que era merecedor ao apresentar, perante um espanto geral, a comédia de Marcelino Mesquita “Peraltas e Sécias” onde impera o bom gosto de tudo que punha em cena. O ressurgimento da dramaturgia portuguesa, nesse período, dá-se com a apresentação de cento e dezasseis peças nacionais, sessenta e três em estreia, onde se incluem dez revistas e quatro peças infantis, onde surgem sucessos de novos autores como Carlos Amaro, Armando Vieira Pinto e Virgínia Vitorino. Mas o verdadeiro triunfo foi o aparecimento de quarenta e cinco obras de clássicos portugueses donde se destaca Gil Vicente e passa por Camões, António José da Silva, Correia Garção, Almeida Garret (de quem se festeja sempre o seu dia com Frei Luís de Sousa) e António Ferreira com a única tragédia da literatura portuguesa e que, até então, era considerada irrepresentável, permitindo aos espectadores ver os seus clássicos no palco o que nunca havia sucedido. Mas ainda não satisfeita com isso, Amélia Rey Colaço, cria o ciclo de teatro ao ar livre com o “Auto de Santo António” no adro da Sé de Lisboa, a “Castro” no adro do Mosteiro de Alcobaça, com o primeiro Shakespeare da Companhia “Sonho de uma Noite de Verão” no Parque de Palhavã (onde se situa actualmente a Fundação Calouste Gulbenkian) e ainda com Gil Vicente levado por todo o país. As encenações, em grande parte do casal, tem também a colaboração esporádica de António Pinheiro e Palmira Bastos. Na decoração embora, Amélia Rey Colaço continue a imprimir o seu habitual bom gosto, recorre mais frequentemente a outros artistas que desenham os cenários e figurinos tais como António Soares, Almada Negreiros, Stuart, Eduardo Malta, Jorge Herold e José Barbosa cuja colaboração se torna quase assídua. Na representação, onde a brilhante batuta de Robles Monteiro acentua cada vez mais o estilo próprio desta companhia, brilham as representações de Raul de Carvalho, Maria Lalande, Maria Clementina, Álvaro Benamor e mais espaçadamente Brunilde Júdice e José Gamboa. Mas também, como verdadeira escola que era, despontam novos valores que virão a destacar-se no futuro: João Villaret, Augusto de Figueiredo, Pedro Lemos, Paiva Raposo e ainda, muito novinha, Eunice Munoz. Porém, neste equilibrado conjunto, não é dispensada a presença de grandes nomes da cena como Palmira Bastos, Aura Abranches, Lucília Simões, Alves da Cunha, Nascimento Fernandes, Estêvão Amarante e Samwel Diniz. Do restante reportório, neste período dominado pelos clássicos nacionais, apenas se destacaram Shakespeare e Schiller, pois continuou-se a manter o critério anterior de procurar atrair o público com peças de agrado fácil e, neste panorama, dominaram os dramas franceses vinte cinco sendo dezoito em estreia e as vinte alegres e sentimentais comédias espanholas, das quais quinze em estreia. . Além destas, apenas cinco peças inglesas, duas brasileiras, uma argentina, duas americanas, duas do chileno Armando Moock e três italianas, uma delas, “Sonho Mas Talvez Não” de Pirandello, com o prestígio de estreia mundial e a presença do autor. O público que desconfiava sempre da apresentação de teatro clássico, ocorre em grande número a espectáculos como “Degredados”, “Ciclone”, “Dona Formiga”, “Desencontros”, “Tá Mar” e o sucesso fantástico que foi “Recompensa” de Ramada Curto. Levando à cena os autores clássicos portugueses e, pela primeira vez em 1939, Gil Vicente aos palcos brasileiros, esta companhia fez com que o Teatro Nacional voltasse a cumprir a sua missão. Ao iniciar o novo período de concessão do teatro, 1943 a 1964, e depois de ter cumprido aquele objectivo, é altura de dar a conhecer o grande teatro mundial que inicia ao apresentar a trilogia de Eugene O’Neill “Electra e os Fantasmas”, considerada das obras máximas do teatro americano, na noite de 21 de Fevereiro de 1943. Poucos, fora dos Estados Unidos, se aventuraram a levar à cena este tão difícil espectáculo composto de três tragédias num total de quinze actos com uma complicada montagem e exigindo intérpretes de elevada envergadura. Ao faze-lo, esta Companhia veio mostrar que estava à altura e com disposição de nos dar a conhecer tudo o que de melhor se produziu no teatro mundial. Relega para segundo plano o teatro de “boulevard” tão usado nos anos anteriores e opta por trazer até nós os grandes autores estrangeiros e, assim, entre as dezoito peças francesas representadas, quatro são de Molière revelando também Jean Cocteau e Jean Anouill. Com as vinte e três peças espanholas vem a poesia e a força de Federico Garcia Lorca e Valle Inclán a par dos clássicos Lope de Vega, Calderón, Cervantes e ainda Alejandro Casona, exilado na Argentina. Shakespeare, tão pouco representado em Portugal, é contemplado com quatro peças entre as dezasseis inglesas onde figuram também Oscar Wilde, G. Bernard Shaw e J. B. Priestley. Nas seis peças americanas, além de Eugene O’Neill, surgem Tennessee Williams e Arthur Miller. As seis peças italianas incluem Piradello, Eduardo De Filippo, Diego Fabbri e o clássico Goldoni. Dos autores de língua alemã, até antão de difícil acesso, são revelados Hauptmann, Max Frisch e Durremat, só faltando Berthold Brecht que, apesar do grande desejo de Amélia Rey Colaço de fazer a “Mãe Coragem”, estava proibido pela censura. Juntando a estes ainda os nomes do russo ucraniano Gogol e do sueco Strindberg fica a fazer-se ideia da riqueza que foi o reportório deste período. Mas, com a representação de cento e quatro peças que incluíam trinta e cinco clássicos e a revelação de autores como José Régio, Bernardo Santareno, Luiz Francisco Rebello e Romeu Correia, sem esquecer os consagrados Carlos Selvagem, Ramada Curto e Júlio Dantas que, para a companhia escreveu as suas três últimas peças, o reportório nacional não foi esquecido. Na encenação, embora Rey Colaço e Robles Monteiro assegurem ainda muitos espectáculos, dá-se uma abertura ao exterior onde o alemão Erwin Meyenburg, entre 1944 e 1963, encena quatorze peças quase todas clássicas, o espanhol Cayetano Luca de Tena que entre 1958 e 1970 encena sete e ainda Henriette Morineau, José Tamayo e Michael Benthall. Nos portugueses, com excepção de Francisco Ribeiro e Artur Ramos, os novos encenadores surgem entre os actores da Companhia Varela Silva, Jacinto Ramos, com destaque para Pedro Lemos que, em 1951, assume o cargo de director de cena revelando-se um encenador estudioso e dedicado especialmente aos clássicos. O elenco artístico, cada vez mais coeso, onde brilham Palmira Bastos e Raul de Carvalho, é enriquecido com os nomes de Alves da Cunha, Aura Abranches, Erico Braga, Maria Matos, Eunice Munoz e Vasco Santana, este apenas num espectáculo. Amélia Rey Colaço embora continue a dominar em interpretações que vão da alta comédia à tragédia, começa a espaçar as suas aparições. A escola de actores, proveniente da força da Companhia, continua a revelar ou a dar as primeiras grandes oportunidades a Maria Barroso, Madalena Soto, Carmen Dolores, Lurdes Norberto, Helena Félix, Gina Santos (proveniente do Teatro de Manuela Porto), Rogério Paulo, José de Castro, João Perry, Teresa Mota, Varela Silva e João Mota. Mas a Companhia parece resistir a tudo e continua a trabalhar sem alteração mesmo quando em 1944 é afectada pela saída de quinze elementos, não só actores importantes como Maria Lalande, Lucília Simões e João Villaret como ténicos como o director musical René Bohet , que vão integrar os Comediantes de Lisboa, companhia formada por António Lopes Ribeiro e seu irmão Francisco Ribeiro (Ribeirinho). Em 1958 morre Robles Monteiro que foi o grande ensaiador e administrador e isto afecta o equilíbrio da Companhia obrigando Amélia Rey Colaço a dedicar-se, também, às funções administrativas às quais se mantivera sempre alheia, o que lhe vai absorver muito tempo. Na decoração, embora ainda apareçam colaborações esporádicas de Emilio Lino, José Barbosa e Almada Negreiros, Amélia Rey Colaço encontra no desenhador Lucient Donnat aquele bom gosto que ela sempre imprimira aos espectáculos e encarrega-o, a partir de 1942, da decoração de cenários e figurinos de quase todas as peças. Embora o Teatro Nacional tivesse um público certo que só ali via teatro, existia um certo alheamento do outro público começando-se a sentir um nítido afastamento de espectadores. Mas a Companhia alcança ainda grandes sucessos com “O Leque de Lady Windermere”, “Os Maias”, “As Bruxas de Salem”, “As Árvores Morrem de Pé”, “Prémio Nobel”, “O Processo de Jesus”, “Crime e Castigo”, “A Casa de Bernarda Alba” e “A Visita da Velha Senhora”. Encontrava-se em cena “Macbeth” de William Shakespeare peça que, segundo a superstição teatral, nem sequer o nome se podia pronunciar dentro de um teatro pois originava grandes tragédias. E, infelizmente, a superstição tornou-se realidade com Amélia Rey Colaço. Toda a estabilidade alcançada ao longo dos anos que permitiu a criação de uma companhia que tantos êxitos tiveram, proporcionando ao público espectáculos de grande qualidade, iria ter o seu fim. Na noite de 2 de Dezembro de 1964, um incêndio enorme, além de destruir o interior do teatro, consome o valioso guarda-roupa e cenários de quarenta e três anos de existência da Companhia. A partir desta noite trágica, seriam dez anos de imprevistos de toda a espécie com a passagem por várias salas, nem sempre em boas condições, que mostraram bem a persistência e força de vontade dessa grande Senhora que tudo fez para que a sua grande companhia não morresse. Sem teatro e sem património, Amélia Rey Colaço não esmorece e, apoiada na coesão da sua companhia, não admite paragens e, assim, no dia 15 de Dezembro “Macbeth”, a peça que estava em cena, reaparece no palco do Coliseu dos Recreios num espectáculo único sem cenários e sem guarda-roupa. Foi a forma de Amélia Rey Colaço afirmar a sua persistência e que não desistia pois imediatamente procura outro teatro onde possa actuar enquanto aguarda a reconstrução do teatro que, mal pensava ela, só estaria concluída passados quatorze anos. Com uma renda elevadíssima, consegue arrendar a degradada sala do Teatro Avenida que, com o que havia recebido do seguro e com o bom gosto de Lucien Donnat , transforma numa sala elegantíssima para receber o público na noite de 6 de Fevereiro de 1965. Com a presença do Presidente da República e euforicamente aplaudida, a prever uma rápida recuperação do prestígio alcançado, estreia a peça de Miguel Franco “O Motim”. Mas a peça não agradou ao regime e, assim, passado sete dias, a 13, com uma violência incrível, a polícia política proíbe a peça, sela as portas do teatro e arranca os cartazes. Amélia Rey Colaço, embora abandonada por um público que lhe parecia fiel mas que o era apenas à sala desaparecida, persiste e continua a apresentar as suas peças sempre com a dignidade a que nos habituara. Mas, o anátema de “Macbeth” continua e, quando parecia que o reportório retomava o antigo equilíbrio, na noite de 13 de Dezembro de 1967, de novo, o fogo destrói completamente o Avenida. Continua a não se deixar abater e aluga o Cine-Teatro Capitólio, no Parque Mayer, um espaço muito grande e desconfortável tão diferente daqueles que a Companhia havia tido anteriormente mas onde, apesar de tudo, consegue alcançar o último grande êxito com o “Tango” do polaco Slawomir Mrozek. Depois de cerca de três anos naquele espaço, vai para o Teatro da Trindade, também em más condições pois têm de o repartir com uma companhia de ópera e opereta da F.N.A.T.. Em todos estes atribulados anos e apesar de ter recorrido a algumas peças de êxito fácil, a Companhia apresentou bons espectáculos de elevado nível, como nenhuma outra conseguiu naquele período. Além dos já mencionados “O Motim” e “Tango”, com predomínio do teatro português, apresenta dezanove peças das quais nove em estreia com revelação de duas de Bernardo Santareno e dez clássicas (de novo Gil Vicente com quatro autos apresentados no Teatro de S. Carlos no seu centenário). Francesas foram levadas à cena dez peças com nomes como Ionesco, Camus e Georges Schéade; seis espanholas com peças de Calderon, Fernando de Rojas e Bueno Vallejo; três inglesas dão a conhecer Edward Albee e Harold Pinter; duas brasileiras dando a conhecer Jorge Andrade que escreveu, propositadamente para Amélia Rey Colaço, “Senhora na Boca do Lixo”; e ainda Piradello, De Filippo, Ibsen e Tchekov. Lucien Donnat manteve a decoração e as encenações foram divididas pelos estrangeiros Luca de Tena, José Osuna, Henriette Morineau, Jacques Sereys e Jacques Mauclair (por correspondência) e pelos portugueses Pedro Lemos, Varela Silva, Rogério Paulo, Artur Ramos, Almada Negreiros e Amélia Rey Colaço. O elenco, embora mais reduzido, manteve o estilo a que nos havia habituado e é dominado por Mariana Rey Monteiro. Amélia Rey Colaço chama os seus antigos discípulos Eunice Munoz, João Perry e José de Castro e, mais tarde, Paulo Renato. Também Rogério Paulo, João Mota, Curado Ribeiro e João Guedes regressam à Companhia. O brasileiro Reyes e o popular cómico Costinha tem episódicas aparições. Amélia Rey Colaço faz a sua última aparição como actriz em Adriano II. Palmira Bastos, com 91 anos e cujo o nome bastava ser anunciado para esgotar lotações, aparece, pela última vez, a 15 de Dezembro de 1966, em “Ciclone” na festa de despedida do actor Raul de Carvalho. Em 1974, Amélia Rey Colaço está de novo num teatro digno da sua Companhia, o S. Luiz. A 25 de Abril, a Companhia prepara-se para continuar uma época que estava a ser bem sucedida, ensaiando “Os Desesperados” de Costa Ferreira, peça que havia estado proibida pela Censura e que Amélia Rey Colaço havia conseguido libertar mas que o autor, passado uns dias da revolução, proíbe de ser representada por a considerar inoportuna. Amélia Rey Colaço ainda pensa pôr em cena de novo “O Motim” mas abandonada por grande parte de uma Companhia que parecia coesa e por aqueles em que pensava encontrar apoio desiste e, em Maio de 1974, dá por terminada a actividade da sua Companhia que é extinta oficialmente em 1988, sendo obrigada a leiloar o recheio da sua casa no Dafundo, cedida pela Marquesa Olga de Cadaval, e a abandoná-la. Amélia Rey Colaço morre em Lisboa a 8 de Julho de 1990, junto de sua filha Mariana Rey Monteiro, também já falecida. Com cinquenta e três de existência, a Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, a mais duradoura da Europa, ao longo da toda a sua carreira dignificou o teatro, criando um elenco coeso com um estilo próprio, escola de muitos actores que criaram nome, divulgando toda a dramaturgia nacional e dando a conhecer o mais valioso da dramaturgia estrangeira, tudo isto enfrentando toda a espécie de dificuldades quer económicas quer de liberdade face a uma censura retrógada merece todo o nosso reconhecimento. O Teatro Nacional D. Maria II só em 1978, passados quatorze anos, acaba de ser reconstruido mas nunca mais voltou a ser o que foi durante os anos da permanência daquela Companhia. Com longos períodos fechado, retirando de cena peças com pouco tempo de permanência e lotações esgotadas, destruindo os cenários e impossibilitando assim a sua reapresentação, tendo tido um elenco numeroso, grande parte do tempo inactivo quando teria permitido uma actividade constante de três grupos, um em cena, outro ensaiando novo espectáculo e ainda outro em tournée pela província, com mudanças constante de direcção, tem prestado um péssimo serviço que nos faz recordar com muita saudade aquela prestigiosa companhia. Estas mal alinhavadas palavras são dedicadas à memória de D. Amélia Rey Colaço com toda a minha gratidão por todos os espectáculos a que pude assistir, pela simpatia com que, por duas vezes, me cedeu o seu teatro para apresentação do meu grupo e pelas palavras que me dirigiu quando na estreia do Proscenium subiu ao palco para me felicitar, o que tanto me sensibilizou. Do Teatro Nacional D. Maria II recordo com muita saudade, além dos espectáculos que ali assisti, as conversas que, sentados no palco, tive com a Avó Palmira e os longos serões passados no camarim de Pedro Lemos trocando impressões sobre a actividade do Proscénium a quem ambos dedicámos muito do nosso tempo e entusiasmo. OBRIGADO D. AMÉLIA REY COLAÇO Video em que Amélia Rey Colaço contracena com sua filha Mariana Rey Monteiro Os dados para a elaboração deste texto são de Victor Pavão dos Santos para o catálogo da exposição no Museu do Teatro comemorativa dos setenta anos de teatro de Amélia Rey Colaço

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