segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

FOI HÁ 62 ANOS

Foi há 62 anos que nos conhecemos, minha querida Teresinha, e não mais nos separámos. Durante o primeiro ano através de correspondência diária. Depois, foram cinquenta e seis anos enfrentando momentos de grandes dificuldades que o nosso amor sempre suplantou e nos proporcionou momentos de suprema felicidade com os nossos três filhos a quem dedicaste toda a tua ternura. Infelizmente, há quase seis anos, abalaste. Mas, junto de mim, deixaste a recordação de todo aquele amor que me deste e não há um só dia que não estejas junto de mim com todo o amor de uma união indestrutível. Que saudade, meu querido amor. Como eu desejava ter-te agora aqui estreitando-te nos meus braços enquanto me limpavas estas lágrimas que me inundam os olhos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

UMA GRANDE COMPANHIA SONHO DE UMA GRANDE SENHORA

A companhia de teatro Rey Colaço – Robles Monteiro manteve-se em cena durante 53 anos (1921 a 1974) enfrentando toda a espécie de dificuldades, quer económicas, quer da censura, quer ainda das muitas críticas de quem esquecia todas as limitações que defrontavam face a um regime que reprimia a cultura e a arte. Contra mim falo pois, muitas vezes, apesar da muita admiração que tinha por D. Amélia, insatisfeito com o reportório levado à cena e com as condições que se viviam, teci críticas a alguns espectáculos esquecendo todos os bons momentos de teatro que tive o prazer de desfrutar. Quantas vezes descarregávamos naquela companhia, pela sua longa existência, tudo o que sentíamos contra o governo que nos oprimia? Esquecíamos que, por motivos económicos, enquanto representavam uma peça à noite, ensaiavam outra durante o dia pois as despesas eram muitas e não permitiam paragens o que, muitas vezes, o pouco tempo de uma peça em cena não permitia que a seguinte tivesse toda a preparação desejada. Esquecíamos que as imposições da censura os impediam de levar à cena tudo que desejariam. Como a D. Amélia desejou interpretar a Mãe Coragem de Brecht nunca podendo realizar aquele sonho porque a censura não permitia a representação daquele autor. Para se ver como era difícil passar pelas malhas da censura recordamos um pequeno episódio. Num ano em que D. Amélia já não sabia o que levar à cena, face aos cortes da censura, lembrou-se de pôr em cena Romeu e Julieta de William Shakespeare. Mesmo assim, na noite do ensaio para os censores, estes quiseram impedir a representação porque havia relações sexuais entre Romeu e Julieta o que provocou uma grande discussão e a peça só foi à presença do público porque um deles, mais condescendentes, lembrou que os protagonistas, embora secretamente, tinham casado. Contado agora dá vontade de rir e até parece mentira, mas era a situação que se vivia naquela altura. Por muito que se critique não se pode negar que, ao longo dos seus cinquenta e três anos de existência, esta companhia tudo fez pelo teatro, alcançando momentos muito altos, lançando muito novos actores e autores, dando a conhecer muito do que de melhor o teatro criou e levando à cena sempre todos os espectáculos com muita dignidade. É a história desta companhia, que surge na noite de 18 de Junho de 1921 no palco do Teatro S. Carlos com a peça “Zilda” de Alfredo Cortez, que vamos contar. Os seus jovens directores vêm de meios totalmente diferentes mas com um sentimento comum, o seu o amor ao teatro, que os uniu não só na sua vida sentimental como na construção de uma obra a quem o teatro português tando ficou a dever. Amélia Lafourcade Schmidt Rey Colaço, filha do pianista e compositor Alexandre Rey Monteiro, mestre de música do último rei de Portugal, viveu desde criança o ambiente cultural da casa dos pais e dirigia os seus estudos para o violino. Numa temporada passada em Berlim em casa de sua avó materna, em 1913, assiste aos espectáculos de Max Reinhardt que a deslumbram e fazem nascer a sua grande paixão pelo teatro e o desejo de ser actriz. No seu regresso a Lisboa, com o apoio dos pais, recebe lições do grande actor Augusto Rosa e depois de várias apresentações como declamadora, quer acompanhada por seu pai quer pelas irmãs que também eram artistas, estreia-se no Teatro República (actual S.Luiz), a 17 de Novembro de 1917, interpretando Marianela a que se seguem várias temporadas, sempre aclamada pelo público e pela crítica, onde se impõe pela sua grande cultura e talento, tendo sido mesmo convidada para primeira figura de várias companhias espanholas numa temporada que passou naquele país. Ao contrário, Felisberto Manuel Teles Jordão Robles Monteiro nasceu em S. Vicente da Beira a 9 de Setembro de 1888, descendente de uma família da chamada aristocracia rural de fortes tradições clericais, frequentou o Seminário da Guarda onde um bispo, após uma récita escolar, o aconselhou a seguir a sua verdadeira vocação trocando o altar pelo palco. Seguiu o conselho e vai para Lisboa onde frequenta, como voluntário, o Curso Superior de Letras e envereda, inicialmente, pelo jornalismo não tardando a aparecer nos palcos como discípulo dilecto de Augusto Rosa. Estreia-se como profissional no Teatro República na peça “A Caixeirinha” e, dadas as suas potenciais qualidades como organizador e ensaiador, acaba por dirigir já, em 1919, o Teatro Ginásio onde trabalhava Amélia Rey Colaço. Amantes do teatro, ambos discípulos de Augusto Rosa, acabam por casar em Dezembro de 1920 e integram, como societários, a companhia do Teatro Nacional que, na altura, pouco prestígio tinha. É ali que Amélia, desafiando todas as convenções, começa a dar vida a Zilda, a peça de estreia de Alfredo Cortez representativa do esforço de renovação do teatro português, provocando, com excepção do actor e grande mestre do naturalismo António Pinheiro, geral animosidade na acomodada companhia daquele teatro É devido a esta resistência que estes dois jovens, enfrentado toda a espécie de dificuldades, ajudados por António Pinheiro conseguem reunir um bom conjunto e formarem a sua própria companhia que estreia, em pleno verão, no Teatro de S. Carlos o único que se encontrava vago na altura. Em Outubro, promovem a reaparição da grande artista Ângela Pinto mas, por falta de teatros, partem numa longa “tournée” para o Porto de onde só regressam em 1922 para se fixarem, durante quatro anos, no Teatro Politeama onde, depois de um atribulado começo, iniciam a longa vida desta grande companhia que tão importante haveria de ser. Durante os primeiros anos (1921 a 1929) estabelecem-se os princípios que a iriam caracterizar ao longo da toda a sua carreira. Amélia Rey Colaço, como grande actriz que era, afirma-se através de interpretações de êxito certo e, mercê da sua cultura e conhecimento do panorama teatral europeu, encarrega-se também da escolha do reportório e montagem das peças onde põe todo o seu bom gosto, isso sem a impedir de, sempre que julgava necessário, chamar artistas famosos para procederem às decorações, como sucedeu com Raul Lino para decorar a “Salomé”, Almada Negreiros para fantasiar uma revista carnavalesca e Alice Rey Colaço para localizar a “Dama das Camélias” na sua época. Por sua vez, Robles Monteiro começa a apagar-se como actor, dedicando-se mais à marcação das peças e ao ensaio dos actores. É aí que revela toda a sua mestria ao criar uma escola que viria a caracterizar esta companhia e a revelar novos talentos como Raul de Carvalho que se estreou no primeiro espectáculo da companhia, Maria Lalande, Álvaro Benamor e Assis Pacheco. Além disso, dirigia também, com grande eficácia, todo o trabalho técnico e administrativo mantendo uma sólida disciplina no seio da companhia. É assim que, dos predicados destes dois jovens, nasce um conjunto coeso que garantirá o equilíbrio das qualidades artísticas de todos e onde se destacaram, entre outros, Maria Clementina, Emilia de Oliveira e Vital dos Santos. Além do seu elenco próprio, também foram convidados grandes nomes da época como Ângela Pinto, já referida atrás, Palmira Bastos que viria mais tarde a integrar a companhia e o actor brasileiro Nascimento Fernandes. Durante este período (1921 a 1929), a Companhia apresenta trinta e oito peças portuguesas, das quais vinte e duas em estreia, incluindo seis revistas de Carnaval, onde predominam os novos autores Alfredo Cortez, Carlos Selvagem e Ramada Curto; vinte e oito peças francesas, das quais vinte e duas em estreia, escolhidas entre as que mais se destacaram no “boulevard”, critério igualmente seguido nas dezanove peças espanholas, das quais quinze em estreia. A 26 de Novembro 1928, precedido de uma conferência de Ramada Curto, foi apresentado o primeiro Gil Vicente da companhia, no seu Auto Pastoril Português. O reportório daqueles anos foi completado com cinco peças italianas, duas brasileiras e duas americanas. Com excepção de treze atribuídas a António Pinheiro, todas as encenações pertencem conjuntamente a Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. O segundo período da Companhia (1930-1942) inicia-se ao ganharem o concurso para a exploração do Teatro Nacional Almeida Garret (em 1939 é-lhe restituído o nome de D. Maria II) e vão empenhar-se na concretização do programa daquele escritor erguendo um reportório verdadeiramente nacional com ressurgimento dos clássicos há muito esquecidos. Na noite de 30 de Dezembro de 1929, Amélia Rey Colaço devolve aquele teatro, que tão degradado e desprestigiado andava, toda a dignidade e beleza de que era merecedor ao apresentar, perante um espanto geral, a comédia de Marcelino Mesquita “Peraltas e Sécias” onde impera o bom gosto de tudo que punha em cena. O ressurgimento da dramaturgia portuguesa, nesse período, dá-se com a apresentação de cento e dezasseis peças nacionais, sessenta e três em estreia, onde se incluem dez revistas e quatro peças infantis, onde surgem sucessos de novos autores como Carlos Amaro, Armando Vieira Pinto e Virgínia Vitorino. Mas o verdadeiro triunfo foi o aparecimento de quarenta e cinco obras de clássicos portugueses donde se destaca Gil Vicente e passa por Camões, António José da Silva, Correia Garção, Almeida Garret (de quem se festeja sempre o seu dia com Frei Luís de Sousa) e António Ferreira com a única tragédia da literatura portuguesa e que, até então, era considerada irrepresentável, permitindo aos espectadores ver os seus clássicos no palco o que nunca havia sucedido. Mas ainda não satisfeita com isso, Amélia Rey Colaço, cria o ciclo de teatro ao ar livre com o “Auto de Santo António” no adro da Sé de Lisboa, a “Castro” no adro do Mosteiro de Alcobaça, com o primeiro Shakespeare da Companhia “Sonho de uma Noite de Verão” no Parque de Palhavã (onde se situa actualmente a Fundação Calouste Gulbenkian) e ainda com Gil Vicente levado por todo o país. As encenações, em grande parte do casal, tem também a colaboração esporádica de António Pinheiro e Palmira Bastos. Na decoração embora, Amélia Rey Colaço continue a imprimir o seu habitual bom gosto, recorre mais frequentemente a outros artistas que desenham os cenários e figurinos tais como António Soares, Almada Negreiros, Stuart, Eduardo Malta, Jorge Herold e José Barbosa cuja colaboração se torna quase assídua. Na representação, onde a brilhante batuta de Robles Monteiro acentua cada vez mais o estilo próprio desta companhia, brilham as representações de Raul de Carvalho, Maria Lalande, Maria Clementina, Álvaro Benamor e mais espaçadamente Brunilde Júdice e José Gamboa. Mas também, como verdadeira escola que era, despontam novos valores que virão a destacar-se no futuro: João Villaret, Augusto de Figueiredo, Pedro Lemos, Paiva Raposo e ainda, muito novinha, Eunice Munoz. Porém, neste equilibrado conjunto, não é dispensada a presença de grandes nomes da cena como Palmira Bastos, Aura Abranches, Lucília Simões, Alves da Cunha, Nascimento Fernandes, Estêvão Amarante e Samwel Diniz. Do restante reportório, neste período dominado pelos clássicos nacionais, apenas se destacaram Shakespeare e Schiller, pois continuou-se a manter o critério anterior de procurar atrair o público com peças de agrado fácil e, neste panorama, dominaram os dramas franceses vinte cinco sendo dezoito em estreia e as vinte alegres e sentimentais comédias espanholas, das quais quinze em estreia. . Além destas, apenas cinco peças inglesas, duas brasileiras, uma argentina, duas americanas, duas do chileno Armando Moock e três italianas, uma delas, “Sonho Mas Talvez Não” de Pirandello, com o prestígio de estreia mundial e a presença do autor. O público que desconfiava sempre da apresentação de teatro clássico, ocorre em grande número a espectáculos como “Degredados”, “Ciclone”, “Dona Formiga”, “Desencontros”, “Tá Mar” e o sucesso fantástico que foi “Recompensa” de Ramada Curto. Levando à cena os autores clássicos portugueses e, pela primeira vez em 1939, Gil Vicente aos palcos brasileiros, esta companhia fez com que o Teatro Nacional voltasse a cumprir a sua missão. Ao iniciar o novo período de concessão do teatro, 1943 a 1964, e depois de ter cumprido aquele objectivo, é altura de dar a conhecer o grande teatro mundial que inicia ao apresentar a trilogia de Eugene O’Neill “Electra e os Fantasmas”, considerada das obras máximas do teatro americano, na noite de 21 de Fevereiro de 1943. Poucos, fora dos Estados Unidos, se aventuraram a levar à cena este tão difícil espectáculo composto de três tragédias num total de quinze actos com uma complicada montagem e exigindo intérpretes de elevada envergadura. Ao faze-lo, esta Companhia veio mostrar que estava à altura e com disposição de nos dar a conhecer tudo o que de melhor se produziu no teatro mundial. Relega para segundo plano o teatro de “boulevard” tão usado nos anos anteriores e opta por trazer até nós os grandes autores estrangeiros e, assim, entre as dezoito peças francesas representadas, quatro são de Molière revelando também Jean Cocteau e Jean Anouill. Com as vinte e três peças espanholas vem a poesia e a força de Federico Garcia Lorca e Valle Inclán a par dos clássicos Lope de Vega, Calderón, Cervantes e ainda Alejandro Casona, exilado na Argentina. Shakespeare, tão pouco representado em Portugal, é contemplado com quatro peças entre as dezasseis inglesas onde figuram também Oscar Wilde, G. Bernard Shaw e J. B. Priestley. Nas seis peças americanas, além de Eugene O’Neill, surgem Tennessee Williams e Arthur Miller. As seis peças italianas incluem Piradello, Eduardo De Filippo, Diego Fabbri e o clássico Goldoni. Dos autores de língua alemã, até antão de difícil acesso, são revelados Hauptmann, Max Frisch e Durremat, só faltando Berthold Brecht que, apesar do grande desejo de Amélia Rey Colaço de fazer a “Mãe Coragem”, estava proibido pela censura. Juntando a estes ainda os nomes do russo ucraniano Gogol e do sueco Strindberg fica a fazer-se ideia da riqueza que foi o reportório deste período. Mas, com a representação de cento e quatro peças que incluíam trinta e cinco clássicos e a revelação de autores como José Régio, Bernardo Santareno, Luiz Francisco Rebello e Romeu Correia, sem esquecer os consagrados Carlos Selvagem, Ramada Curto e Júlio Dantas que, para a companhia escreveu as suas três últimas peças, o reportório nacional não foi esquecido. Na encenação, embora Rey Colaço e Robles Monteiro assegurem ainda muitos espectáculos, dá-se uma abertura ao exterior onde o alemão Erwin Meyenburg, entre 1944 e 1963, encena quatorze peças quase todas clássicas, o espanhol Cayetano Luca de Tena que entre 1958 e 1970 encena sete e ainda Henriette Morineau, José Tamayo e Michael Benthall. Nos portugueses, com excepção de Francisco Ribeiro e Artur Ramos, os novos encenadores surgem entre os actores da Companhia Varela Silva, Jacinto Ramos, com destaque para Pedro Lemos que, em 1951, assume o cargo de director de cena revelando-se um encenador estudioso e dedicado especialmente aos clássicos. O elenco artístico, cada vez mais coeso, onde brilham Palmira Bastos e Raul de Carvalho, é enriquecido com os nomes de Alves da Cunha, Aura Abranches, Erico Braga, Maria Matos, Eunice Munoz e Vasco Santana, este apenas num espectáculo. Amélia Rey Colaço embora continue a dominar em interpretações que vão da alta comédia à tragédia, começa a espaçar as suas aparições. A escola de actores, proveniente da força da Companhia, continua a revelar ou a dar as primeiras grandes oportunidades a Maria Barroso, Madalena Soto, Carmen Dolores, Lurdes Norberto, Helena Félix, Gina Santos (proveniente do Teatro de Manuela Porto), Rogério Paulo, José de Castro, João Perry, Teresa Mota, Varela Silva e João Mota. Mas a Companhia parece resistir a tudo e continua a trabalhar sem alteração mesmo quando em 1944 é afectada pela saída de quinze elementos, não só actores importantes como Maria Lalande, Lucília Simões e João Villaret como ténicos como o director musical René Bohet , que vão integrar os Comediantes de Lisboa, companhia formada por António Lopes Ribeiro e seu irmão Francisco Ribeiro (Ribeirinho). Em 1958 morre Robles Monteiro que foi o grande ensaiador e administrador e isto afecta o equilíbrio da Companhia obrigando Amélia Rey Colaço a dedicar-se, também, às funções administrativas às quais se mantivera sempre alheia, o que lhe vai absorver muito tempo. Na decoração, embora ainda apareçam colaborações esporádicas de Emilio Lino, José Barbosa e Almada Negreiros, Amélia Rey Colaço encontra no desenhador Lucient Donnat aquele bom gosto que ela sempre imprimira aos espectáculos e encarrega-o, a partir de 1942, da decoração de cenários e figurinos de quase todas as peças. Embora o Teatro Nacional tivesse um público certo que só ali via teatro, existia um certo alheamento do outro público começando-se a sentir um nítido afastamento de espectadores. Mas a Companhia alcança ainda grandes sucessos com “O Leque de Lady Windermere”, “Os Maias”, “As Bruxas de Salem”, “As Árvores Morrem de Pé”, “Prémio Nobel”, “O Processo de Jesus”, “Crime e Castigo”, “A Casa de Bernarda Alba” e “A Visita da Velha Senhora”. Encontrava-se em cena “Macbeth” de William Shakespeare peça que, segundo a superstição teatral, nem sequer o nome se podia pronunciar dentro de um teatro pois originava grandes tragédias. E, infelizmente, a superstição tornou-se realidade com Amélia Rey Colaço. Toda a estabilidade alcançada ao longo dos anos que permitiu a criação de uma companhia que tantos êxitos tiveram, proporcionando ao público espectáculos de grande qualidade, iria ter o seu fim. Na noite de 2 de Dezembro de 1964, um incêndio enorme, além de destruir o interior do teatro, consome o valioso guarda-roupa e cenários de quarenta e três anos de existência da Companhia. A partir desta noite trágica, seriam dez anos de imprevistos de toda a espécie com a passagem por várias salas, nem sempre em boas condições, que mostraram bem a persistência e força de vontade dessa grande Senhora que tudo fez para que a sua grande companhia não morresse. Sem teatro e sem património, Amélia Rey Colaço não esmorece e, apoiada na coesão da sua companhia, não admite paragens e, assim, no dia 15 de Dezembro “Macbeth”, a peça que estava em cena, reaparece no palco do Coliseu dos Recreios num espectáculo único sem cenários e sem guarda-roupa. Foi a forma de Amélia Rey Colaço afirmar a sua persistência e que não desistia pois imediatamente procura outro teatro onde possa actuar enquanto aguarda a reconstrução do teatro que, mal pensava ela, só estaria concluída passados quatorze anos. Com uma renda elevadíssima, consegue arrendar a degradada sala do Teatro Avenida que, com o que havia recebido do seguro e com o bom gosto de Lucien Donnat , transforma numa sala elegantíssima para receber o público na noite de 6 de Fevereiro de 1965. Com a presença do Presidente da República e euforicamente aplaudida, a prever uma rápida recuperação do prestígio alcançado, estreia a peça de Miguel Franco “O Motim”. Mas a peça não agradou ao regime e, assim, passado sete dias, a 13, com uma violência incrível, a polícia política proíbe a peça, sela as portas do teatro e arranca os cartazes. Amélia Rey Colaço, embora abandonada por um público que lhe parecia fiel mas que o era apenas à sala desaparecida, persiste e continua a apresentar as suas peças sempre com a dignidade a que nos habituara. Mas, o anátema de “Macbeth” continua e, quando parecia que o reportório retomava o antigo equilíbrio, na noite de 13 de Dezembro de 1967, de novo, o fogo destrói completamente o Avenida. Continua a não se deixar abater e aluga o Cine-Teatro Capitólio, no Parque Mayer, um espaço muito grande e desconfortável tão diferente daqueles que a Companhia havia tido anteriormente mas onde, apesar de tudo, consegue alcançar o último grande êxito com o “Tango” do polaco Slawomir Mrozek. Depois de cerca de três anos naquele espaço, vai para o Teatro da Trindade, também em más condições pois têm de o repartir com uma companhia de ópera e opereta da F.N.A.T.. Em todos estes atribulados anos e apesar de ter recorrido a algumas peças de êxito fácil, a Companhia apresentou bons espectáculos de elevado nível, como nenhuma outra conseguiu naquele período. Além dos já mencionados “O Motim” e “Tango”, com predomínio do teatro português, apresenta dezanove peças das quais nove em estreia com revelação de duas de Bernardo Santareno e dez clássicas (de novo Gil Vicente com quatro autos apresentados no Teatro de S. Carlos no seu centenário). Francesas foram levadas à cena dez peças com nomes como Ionesco, Camus e Georges Schéade; seis espanholas com peças de Calderon, Fernando de Rojas e Bueno Vallejo; três inglesas dão a conhecer Edward Albee e Harold Pinter; duas brasileiras dando a conhecer Jorge Andrade que escreveu, propositadamente para Amélia Rey Colaço, “Senhora na Boca do Lixo”; e ainda Piradello, De Filippo, Ibsen e Tchekov. Lucien Donnat manteve a decoração e as encenações foram divididas pelos estrangeiros Luca de Tena, José Osuna, Henriette Morineau, Jacques Sereys e Jacques Mauclair (por correspondência) e pelos portugueses Pedro Lemos, Varela Silva, Rogério Paulo, Artur Ramos, Almada Negreiros e Amélia Rey Colaço. O elenco, embora mais reduzido, manteve o estilo a que nos havia habituado e é dominado por Mariana Rey Monteiro. Amélia Rey Colaço chama os seus antigos discípulos Eunice Munoz, João Perry e José de Castro e, mais tarde, Paulo Renato. Também Rogério Paulo, João Mota, Curado Ribeiro e João Guedes regressam à Companhia. O brasileiro Reyes e o popular cómico Costinha tem episódicas aparições. Amélia Rey Colaço faz a sua última aparição como actriz em Adriano II. Palmira Bastos, com 91 anos e cujo o nome bastava ser anunciado para esgotar lotações, aparece, pela última vez, a 15 de Dezembro de 1966, em “Ciclone” na festa de despedida do actor Raul de Carvalho. Em 1974, Amélia Rey Colaço está de novo num teatro digno da sua Companhia, o S. Luiz. A 25 de Abril, a Companhia prepara-se para continuar uma época que estava a ser bem sucedida, ensaiando “Os Desesperados” de Costa Ferreira, peça que havia estado proibida pela Censura e que Amélia Rey Colaço havia conseguido libertar mas que o autor, passado uns dias da revolução, proíbe de ser representada por a considerar inoportuna. Amélia Rey Colaço ainda pensa pôr em cena de novo “O Motim” mas abandonada por grande parte de uma Companhia que parecia coesa e por aqueles em que pensava encontrar apoio desiste e, em Maio de 1974, dá por terminada a actividade da sua Companhia que é extinta oficialmente em 1988, sendo obrigada a leiloar o recheio da sua casa no Dafundo, cedida pela Marquesa Olga de Cadaval, e a abandoná-la. Amélia Rey Colaço morre em Lisboa a 8 de Julho de 1990, junto de sua filha Mariana Rey Monteiro, também já falecida. Com cinquenta e três de existência, a Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, a mais duradoura da Europa, ao longo da toda a sua carreira dignificou o teatro, criando um elenco coeso com um estilo próprio, escola de muitos actores que criaram nome, divulgando toda a dramaturgia nacional e dando a conhecer o mais valioso da dramaturgia estrangeira, tudo isto enfrentando toda a espécie de dificuldades quer económicas quer de liberdade face a uma censura retrógada merece todo o nosso reconhecimento. O Teatro Nacional D. Maria II só em 1978, passados quatorze anos, acaba de ser reconstruido mas nunca mais voltou a ser o que foi durante os anos da permanência daquela Companhia. Com longos períodos fechado, retirando de cena peças com pouco tempo de permanência e lotações esgotadas, destruindo os cenários e impossibilitando assim a sua reapresentação, tendo tido um elenco numeroso, grande parte do tempo inactivo quando teria permitido uma actividade constante de três grupos, um em cena, outro ensaiando novo espectáculo e ainda outro em tournée pela província, com mudanças constante de direcção, tem prestado um péssimo serviço que nos faz recordar com muita saudade aquela prestigiosa companhia. Estas mal alinhavadas palavras são dedicadas à memória de D. Amélia Rey Colaço com toda a minha gratidão por todos os espectáculos a que pude assistir, pela simpatia com que, por duas vezes, me cedeu o seu teatro para apresentação do meu grupo e pelas palavras que me dirigiu quando na estreia do Proscenium subiu ao palco para me felicitar, o que tanto me sensibilizou. Do Teatro Nacional D. Maria II recordo com muita saudade, além dos espectáculos que ali assisti, as conversas que, sentados no palco, tive com a Avó Palmira e os longos serões passados no camarim de Pedro Lemos trocando impressões sobre a actividade do Proscénium a quem ambos dedicámos muito do nosso tempo e entusiasmo. OBRIGADO D. AMÉLIA REY COLAÇO Video em que Amélia Rey Colaço contracena com sua filha Mariana Rey Monteiro Os dados para a elaboração deste texto são de Victor Pavão dos Santos para o catálogo da exposição no Museu do Teatro comemorativa dos setenta anos de teatro de Amélia Rey Colaço

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O AVÔ CÉSAR

Apesar de terem morrido muito antes de eu nascer, tenho pelos meus bisavós uma admiração e apreço muito grandes por tudo que fizeram pelo teatro. Quer da parte da minha Avó, quer do meu Avô, os seus Pais e meus Bisavós estiveram ligados ao teatro e penso, que é por isso, esta paixão tão grande que eu sinto pela Arte de Talma. Daí o desejo de deixar no meu blogue a história deles e, para isso, vou começar pelo Avô César. Augusto César de Lacerda nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1829. De família nobre era, por herança dos seus antepassados, moço fidalgo com exercício no paço. Assentou praça na Armada, como guarda-marinha, ali permanecendo algum tempo, tendo os seus mestres reconhecido nele grandes qualidades de trabalho. Em 1846, quando da Revolução da Maria da Fonte, meu bisavô apresentou-se ao serviço da Junta Revolucionária que se encontrava em Santarém. Terminada a revolução, volta à Escola Naval para continuar os estudos mas, devido a perseguições políticas de alguns professores, vê-se obrigado a abandonar aquele estabelecimento de ensino e assentar praça no 1º. Regimento de Artilharia Montada. Contra vontade, participa na revolução de 6 de Outubro combatendo, no Minho, os seus adeptos, pelo que resolve deixar o exército, sem recompensa alguma pelos serviços militares prestados e, como se nada herdasse de seu pai que tudo perdera nas lutas políticas, faz-se actor entrando para o Teatro D. Maria II, como discípulo do actor Epifânio, estreando-se a 29 de Abril de 1851 na peça “O Cavalheiro Duvernay”. Agradou bastante, mas eram tantos e de tanto mérito os actores que naquela altura faziam parte da companhia, tais como Epifânio, Rosa, Tasso, Teodorico e Sargedas, que dificilmente lhe dariam papeis. Tratou ele dos arranjar escrevendo as peças em que havia de sobressair: a primeira, a comédia em 2 actos “A Assinatura de El’Rei”, que obtém um grande êxito e depois a comédia em quatro actos “Duplice Existência”. No entanto, o reportório do D.Maria era quase exclusivamente composto de pesados dramas e meu bisavô sentia-se mais atraído para a evolução do moderno teatro francês o que o animou a aceitar contrato no Gymnasio onde teve a sua bela época de grande nomeada como actor e principalmente como autor. São dessa época as peças “Cinismo, Cepticismo e Crença” , “Dois Mundos “, “A Última Carta” e outras. Em 1856, constitui-se uma sociedade empresária para o teatro D. Fernando que lhe faz propostas muito vantajosas que meu bisavô aceita e para ali escreve o drama histórico “O Martir” e a ópera cómica “Palavra de Rei”, com música de Bramão e, ainda, a comédia “Cenas de Família”. No fim da temporada, resolve regressar ao Gymnasio onde continuam os seus triunfos com “A Probidade”, “Os Filhos dos Trabalhos”, “Mistérios Sociais”, “A Aristocracia e o Dinheiro”, “Defensor da Igreja” e “Trabalho e Honra”. Em 1861 é convidado a entrar para o Teatro D. Maria, então administrado pelo governo, que aceita pois não podia nem devia recusar a garantia do seu futuro através da assegurada reforma. Ali continua a sua feliz nomeada de actor correcto e autor laureado com as suas peças “As Joias da Família” e “Os Homens do Mar”. Em Junho de 1863 resolveu finalmente a partida, tantas vezes anunciada,para o Brasil onde é recebido entusiasticamente. Ali se uniu à actriz Carolina Falco com quem casou no Pará e de que tiveram dois filhos: meu Avô Carlos e meu tio-avô Augusto. No seu regresso a Lisboa, em 1869, é contratado juntamente com sua mulher, pela empresa Santos para o Teatro do Príncipe Real onde leva à cena mais dois originais seus: “O Monarca das Coxilhas” e “Harpa de Deus”. Terminado este contrato, em 1870, associa-se com Manuel Machado e com o Cruz do guarda-roupa par explorarem o Gymnásio onde leva à cena outra peça, “Os Homens que Riem”. Vai depois passar alguns meses ao Porto e regressa, de novo, para o Teatro D. Maria onde põe em palco as peças: “Os Viscondes de Algitão”, “Homens e Feras”, “O Botão de Âncora” e “Asmodeu”, peça que foi premiada. Algumas das muitas peças que escreveu foram publicadas em livro, das quais se destaca “A Grilheta Moral”, que ainda trabalhou mas que já não foi representada. Mais tarde, voltou ao Brasil onde esteve gravemente enfermo e de onde voltou impossibilitado de trabalhar. O Avô César foi um actor-autor que teve a sua época como poucos, conhecendo muito público e prestando serviços importantes ao teatro quer como escritor de todos os géneros desde o ligeiro, à comédia, ópera e drama, quer ainda como empresário e ensaiador. Representou em quase todos os teatros portugueses e fez várias “tournées” tanto no país como no estrangeiro. Entre outras, possuía as seguintes condecorações: Ordem de Cristo pelo seu mérito artístico e pelos actos de filantropia praticados em favor dos seus companheiros desvalidos; Ordem de Santiago pelo seu merecimento, manifestado na composição de muitas obras dramáticas; cavaleiro da Ordem de Isabel A Católica de Espanha, pelo êxito das suas peças que foram traduzidas e representadas em Madrid, como “A Probidade” com o título de “La Fragata Belona”, “Dois Mundos “ com a designação de “Los Peccados del Siglo XIX” e “Cinismo, Ceptismo e Crença” que foi representada em Cádis, com o mesmo nome. Foram-lhe conferidos ainda muitos diplomas de sociedade de beneficência e literárias do Brasil e de Portugal, dos hospitais portugueses e do Rio de Janeiro, Pernambuco, Baía, Porto Alegre e Pará, entre outros. Foi sócio benemérito de Filantropia da Associação Académica de Coimbra e membro do Grande Oriente Brasileiro, num grau elevado. Morreu a 1 de Janeiro de 1903, deixando o seu nome bem ligado à história do teatro, mostrando que valeu a pena quando optou por deixar uma carreira militar por outra muito mais válida: A VIDA ARTÍSTICA.

sábado, 4 de outubro de 2014

RECORDANDO A CASA DE FADOS “A CESÁRIA”

Na paz dos campos, onde tenho vivido os meus últimos tempos, dou comigo a recordar, com uma saudade tão grande que até dói, toda uma vivência, um pouco agitada mas muito rica, que me proporcionou tantos e tantos momentos de alegria e felicidade. “Passou tudo tão depressa” lamentava a minha querida companheira nos seus últimos anos de vida e como é verdade. Como eu recordo as noites de Lisboa cheias de encanto, os conhecimentos e amigos dos mais variados quadrantes com que convivi ao longo dos anos e como eu desejava poder viver tudo outra vez. Como se tal fosse possível e, mesmo que fosse já nada seria como dantes. Lisboa já não é o que foi, os amigos e conhecidos já abalaram quase todos, eu já não aguento aquelas noites em que me bastava dormir dez minutos para recuperar e, principalmente, já não tenho junto de mim aquela que era a razão de todo o meu ser e enchia toda a minha vida de felicidade. Mas tudo isso não impede que continue a recordar, e cada vez com mais frequência, toda a vivência que tive a felicidade de usufruir. E nestas recordações, hoje, lembrei-me de “A Cesária” aquela simpática casa de fados que também já pertence ao passado pois já não existe. De todas as casas de fados que conheci, esta foi sempre aquela de que mais gostei. Era na Rua Gilberto Rola, em Alcântara, onde já no século XIX tinha existido uma tasca na qual, reza a tradição, teria cantado pela última vez, em 1877, Maria Cesária. Já no século XX, foi uma casa de prostituição e, como possuía dois andares, esta passou para o primeiro andar por onde se entrava por uma porta independente, passando o rés-do-chão a uma casa típica, que se denominava “Casa A Cesária”, onde se comiam petiscos e se ouvia cantar o fado. Quando as casas de prostituição foram proibidas, o proprietário consegue licença para fazer obras de ampliação e o primeiro andar é aberto fazendo como que uma varanda para o andar de baixo o qual passou a dar a ideia de um pátio lisboeta. Quer pela decoração, quer pelo ambiente, passou a ser um lugar castiço onde quem servia às mesas também cantava o fado assim como qualquer dos presentes se o desejasse. Abria todos os dias e a maior parte das vezes tinha a lotação esgotada até quase de madrugada. Ao recordar “A Cesária” lembro-me de um episódio que ainda hoje me faz rir, embora os intervenientes não lhe devessem encontrar qualquer graça. O dramaturgo espanhol Alfonso Sastre passou em Lisboa a caminho do México, onde ia passar a sua lua-de-mel. O casal jantou com o Bernardo Santareno que os convidou a irem ouvir o fado à “A Cesária”. Durante a actuação de uma fadista, um individuo com ares de “marialva” começou com dichotes e o Bernardo Santareno mandou-o calar com um “tchiu”. O individuo, com um ar provocante, virando-se para o Bernardo disse-lhe: “O que é que queres? Se queres alguma coisa tira os óculos”. E, para azar e num gesto que ninguém pensaria, o Bernardo tirou mesmo os óculos. Resultado: uma cena de pancadaria que terminou com todos na esquadra de Alcântara onde os noivos passaram a sua noite de núpcias seguindo, de manhã num carro da polícia o chamado "creme nívea", da esquadra para o aeroporto a caminho do México. É de tudo isto que eu tenho saudades aqui na pacatez dos Foros do Queimado. QUE É IMPOSSÍVEL VOLTAR AO PASSADO … É! MAS QUE GOSTAVA … GOSTAVA!

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

UMA CONFERÊNCIA QUE DEU QUE FALAR

O Sindicato Nacional dos Empregados de Escritório do Distrito de Lisboa mantinha na Avenida Duque de Loulé um Externato de Aperfeiçoamento Profissional destinado aos seus associados. Tinha dois cursos de quatro anos, um de contabilidade e outro de correspondente, e mantinha ainda algumas disciplinas que permitiam aos interessados preparação para o difícil exame de admissão ao antigo Instituto Comercial de Lisboa. Foi ali que adquiri os conhecimentos de contabilidade que tão úteis foram à minha vida profissional. De dois em dois anos organizavam visitas de estudo ao estrangeiro das quais falarei brevemente pois usufruí de duas: uma a Paris e outra a Itália. No fim do ano escolar era organizada uma festa para distribuição de prémios aos melhores alunos e apresentação de uma peça de teatro pelos alunos. Com o amor que tenho pelo teatro fiz logo parte do elenco no primeiro e segundo ano, aproveitando o entusiasmo de todos para formar um grupo de teatro o “Proscenium” que teve uma longa vida e de que falarei em detalhe oportunamente. Hoje vou lembrar um ciclo de conferências organizado no plano de actividades daquele grupo. Para participarem convidei os dramaturgos Luís Francisco Rebelo e Bernardo Santareno; os actores e encenadores Rogério Paulo e Pedro Lemos; o actor e autor Costa Ferreira; os críticos de teatro Redondo Júnior e Urbano Tavares Rodrigues. Todos acolheram a ideia com entusiasmo o que garantia um ciclo de conferências com muito interesse. Este iniciava-se com o Rogério Paulo seguido, passado uma semana, por Luís Francisco Rebelo, estando a terceira a cargo de Bernardo Santareno. Faltavam poucos dias para o seu início quando, conversando na direcção do Externato sobre o assunto, o escritor e crítico João Palma Ferreira (que a seguir ao 25 de Abril foi militante do PS e director da Biblioteca Nacional) alertou para o perigo daquela iniciativa pois o Rogério Paulo e o Luís Francisco Rebelo eram comunistas. Esta afirmação lançou o receio nos membros da direcção do Externato a ponto de pretenderem cancelar a sua realização. Tal só não sucedeu por, após uma grande discussão, eu teimar que os convites estavam feitos e tomava a responsabilidade pois os receios do Palma Ferreira eram infundados. Acabaram por ceder, embora um pouco receosos, e o Dr. Sousa Borges, director do Centro, perguntou ao Palma Ferreira: "E o Bernardo Santareno?".Esse não tem perigo pois é católico, respondeu o Palma Ferreira. E o ciclo iniciou-se, deu-se a primeira conferência, o Rogério Paulo falou e não houve qualquer problema. Era suficientemente inteligente para ir dizendo o que interessava dar a conhecer sem poder ser acusado de qualquer opção política. Na segunda, com o Luís Francisco Rebelo, também nada de anormal ocorreu até porque ele chegara atrasado, devido a uma demora num julgamento, e despachou a conferência numa leitura bastante acelerada. Dada a rapidez e o conteúdo da matéria esta só foi assimilada pelos mais familiarizados com o teatro. Frau Costa, uma alemã professora daquela língua mas que falava fluentemente português, lamentou-se que julgava dominar a nossa língua mas não tinha entendido absolutamente nada. Para a terceira conferência, o Bernardo Santareno informou-me que ia fazer uma coisa diferente. Esta, que se denominava “A esperança e o desespero no teatro contemporâneo”, seria ilustrada por textos inéditos que ele estava a traduzir e que seriam ditos por um grupo de actores que ele convidara. Esta notícia entusiasmou os responsáveis pelo Sindicato que até queriam pedir ao SNI uma sala no Palácio Foz, ideia que o Bernardo de imediato recusou.As primeiras duas tinham-se realizado nas salas de aulas do Externato que eram relativamente pequenas. Por isso, resolveu-se que a terceira seria na sede do sindicato na Rua do Alecrim. Dois dias antes da sua realização, telefonou-me o Rogério Paulo preocupado porque o Bernardo não estava a ver bem a realidade em que vivíamos e que entre os trechos que lhe dera para dizer se encontrava a esperança marxista de Sholokhov. Ele não tinha problema em dize-lo até porque se fosse incomodado pela Pide podia dizer que, como actor, representava aquilo que lhe dessem para fazer. Mas, preocupava-se que eu, como organizador, pudesse vir a ter problemas. O Bernardo, como sonhador que era, não estava a ver a dimensão do problema e o perigo que todos corríamos, o que me deixou preocupado, mas o Rogério sossegou-me combinando que antes da conferência falaríamos com ele para o demover daquela ideia. Assim, antes do início da conferência expusemos-lhe o problema mas ele reagiu mal justificando que se apresentava a esperança católica tinha de apresentar também a marxista mas se nós não gostávamos retirava aquele texto. Disse isso um pouco agastado. Também um pouco aborrecido com a sua reacção respondi-lhe, pessoalmente até gostava do texto, que ele estava a alhear-se da realidade e punha-me em perigo não só a mim mas a todo um projecto.O Rogério pôs água na fervura sugerindo que segundo estivesse o ambiente do público assim ele diria ou não aquele texto. E assim, perante uma plateia que enchia a sala ficando alguns na escada por já não haver lugar, Bernardo Santareno leu a sua “Esperança e desespero no teatro contemporâneo” ilustrada com trechos inéditos de Brecht, Genet, Claudel, Sartre, Sholokhov e outros que já não recordo, ditos pelos actores Glicínia Quartin, Cremilde Gil, Cândida de Lacerda, Isabel Ruth, João d’Ávila e Rogério Paulo. Viveu-se uma tarde linda de teatro ouvindo-se trechos, que nunca passariam na censura, recheados de poesia e rebeldia que deliciou uma plateia jovem deixando apenas alguns agastados. Lembro-me que um destes era o tesoureiro do sindicato, católico fervoroso tipo rato de sacristia, que em determinada altura tentei acalmar dizendo, quando anunciavam Paul Claudel, que aquele era católico ao que ele vermelho de raiva respondeu que sabia. Quando ouvi Glicínia Quartin no “Lamento de Joana d’Árc” dizer que estava rodeada de padres fornicadores, concluí que “fora pior a emenda que o soneto”. No final, verificámos com satisfação que a iniciativa resultara pois, salvo raras excepções, havia tido grande êxito. No dia seguinte, ao ler o “Diário de Notícias” vi que a notícia era bastante positiva e ri com a forma como começava, mais ou menos assim: “Realizou-se mais uma conferência de teatro do ciclo que o Sindicato de Empregados de Escritório está realizando, feliz iniciativa dos Drs. Sousa Borges e Isaías Gautier”. Eram o director do Externato e o subdirector de “O Escritório”, meus amigos que apoiavam as minhas iniciativas mas que em determinado momento hesitaram face ao alerta do Palma Ferreira. Não eram pessoas para se gabarem daquilo que não faziam e o teor da notícia era certamente uma dedução do comentador face ao entusiasmo que eles haviam demonstrado e nunca resultante de qualquer afirmação deles. Quando no dia seguinte cheguei ao Externato, estava tudo em pé de guerra e furiosos comigo pois a Pide ameaçara-os que só não fechara o Sindicato porque não se verificaram manifestações nem pró nem contra, mas não permitia a continuação das conferências a não ser com os nomes que ela indicava. A brincar, mas um pouco cínico, respondi que não tinha nada a ver com aquilo pois conforme dizia no jornal, que levava comigo, não fora eu o autor daquela iniciativa. Acabámos todos a rir mas disseram-me que teria de convidar os dois nomes que haviam sido indicados para limpar a imagem que aquele ciclo deixara: Couto Viana e Goulart Nogueira, um fascista e um ultra cabecilha das manifestações que haviam sido feitas contra a exibição da “Alma Boa de Setsuan” da Companhia de Maria della Costa e de “À Espera de Godot” do Teatro Nacional Popular de Francisco Ribeiro. Apesar de amigo do Couto Viana e conhecer bem o Goulart Nogueira, recusei-me terminantemente a fazer o convite e quem quisesse que o fizesse mas numa iniciativa já alheia aquela que acabara de morrer. Ninguém os convidou e a iniciativa morreu ali. A maioria dos protagonistas deste episódio já nos deixaram. O Bernardo Santareno viu-o e falámos pela última vez no Teatro Garcia de Rezende na sessão comemorativa do primeiro aniversário da constituição portuguesa em que foi orador. Para aqui desterrado no mato, recordo com saudade as longas conversas qeu tivemos, numa leitaria da Rua Alexandre Herculano ou numa esplanada da Costa da Caparica, sobre teatro, poesia e os conceitos do bem e do mal. Eram conversas encantadores, com a irreverência mesclada de misticismo, mas de uma poesia encantadora que o Bernardo punha em todas as suas palavras. Esta conferência foi um dos seus gestos de rebeldia contra os princípios estabelecidos mas foi igualmente uma extraordinária tarde de teatro transbordante de talento, arte e poesia. OBRIGADO BERNARDO.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

RECORDANDO CORTE REAL PEREIRA

Pequena "estória" de alguém que devia servir de exemplo a todos os que se dedicam ao automobilismo desportivo. Francisco Corte Real Pereira foi um piloto que, depois de ter participado e destacado em algumas corridas em Portugal, se radicou em Angola, sendo a sua presença certa em todas as provas que ali se realizavam. Das provas em Portugal, lembro 1953 em que venceu a I Taça Cidade do Porto, tripulando um ALBA, carro de construção nacional. Em 1954 voltou a alinhar na II Taça Cidade do Porto, novamente em ALBA quando se esperava um grande despique entre os carros daquela marca e os FAP, igualmente de origem nacional. Naquele ano alinhou também no I Grande Prémio do Porto, em Jaguar, tendo desistido em ambas as provas. Também em Vila Real, alinhou em 1949 tendo ganho o I Grupo até 750 cc. Em 1951 e 1952 ficou em sexto nos dois anos e, em 1958, alinhou, de novo em ALBA, na Taça Circuito Internacional de Vila Real, tendo abandonado, e na Taça Cidade de Vila Real, em BMW 507, classificando-se em 3º. Em Angola, o seu amor ao desporto automóvel, o seu espírito de camaradagem e a sua afabilidade de trato granjearam-lhe um amigo em todos quantos com ele conviveram. A sua presença em qualquer prova era sempre desejada e motivo de satisfação para todos os organizadores e concorrentes. O Corte Real era um exemplo do verdadeiro desportista e um apoio para qualquer concorrente, principalmente, para os mais novos. Antes de afinar o seu carro, corria todas as “boxes” prestando a ajuda necessária a quem dela precisasse e só depois se dedicava à sua viatura. Em 1970, Corte Real Pereira esteve, pela última vez, nas “6 Horas de Nova Lisboa” e recordo, como se fosse hoje, a última mudança de pilotos no seu carro. Encontrava-se já muito debilitado e preocupou-me como entrou e pegou no volante para arrancar para a sua última participação, porque entendi que não se encontrava em condições físicas ideais para conduzir. E tão preocupado estava que me encaminhei para o director da prova a fim do aconselhar a que lhe pusesse a bandeira negra obrigando-o a abandonar a prova. Mas, a meio do trajecto, hesitei e desisti pois não tive coragem de ser o autor do abandono de Corte Real Pereira. Obrigá-lo a abandonar era o mesmo que matá-lo com o desgosto que ia provocar a quem tanto amava as corridas e os automóveis. Corte Real Pereira pôde, assim, concluir as suas últimas “6 Horas de Nova Lisboa”. Oito dias depois, viria a falecer, vítima de acidente, quando tripulava o seu Lótus nas “3 Horas da Huila”. Faleceu a fazer aquilo que tanto amava. No ano seguinte, em sua homenagem e para que não fosse esquecido tão grande desportista e apoiante de todos os que se iniciavam nesta modalidade, já como director da prova instituí a Taça Corte Real Pereira, troféu a ser disputado na corrida de iniciados. Ainda hoje perdura a saudade por um companheiro que não voltaremos a ter entre nós mas que, pela sua maneira de estar, devia ser um exemplo para todos quantos se dedicam a este nobre desporto.

sábado, 9 de agosto de 2014

O ESCRITÓRIO

A Federação Regional dos Sindicatos dos Empregados de Escritório do Sul e Ilhas Adjacentes publicava um boletim “O Escritório”, revista trimestral de divulgação técnica e formação profissional. Era uma publicação que se colocava a par das melhores revistas técnicas estrangeiras da especialidade, com uma tiragem de trinta e um mil exemplares, distribuída gratuitamente aos sócios dos 13 sindicatos de empregados de escritório federados e vendida ao público ao preço de 7$50 ou por assinatura anual de 4 números por 24$00, preço um pouco elevado para a altura. O seu subdirector, Dr. Isaías Gomes Gautier, fora o seu principal obreiro a ela dedicando todo o entusiasmo, dinamismo e espírito empreendedor que punha em tudo a que se dedicava. Foi seu primeiro chefe de redacção o meu amigo Nuno de Morais que, por motivos profissionais, teve de abandonar o lugar no fim do seu primeiro ano de existência. Fui então convidado para ocupar aquele lugar o que aceitei com a condição de o boletim ser exclusivamente técnico e se abstrair de quaisquer ligações governativas. Durante três anos, eu e o Dr. Gautier trabalhávamos, depois das horas de serviço, até bastante tarde na elaboração do boletim, trocando ideias sobre os artigos e a composição gráfica, opiniões por vezes diferentes mas sempre coincidentes quanto ao seu conteúdo. Após os serões de trabalho, terminávamos sempre numa cervejaria para comer qualquer coisa e beber umas canecas. Aí, as nossas discussões eram acaloradas pois o Gautier era admirador de Salazar e eu não era. Levava horas a tentar convencer-me das virtudes do regime salazarista e eu a contrariá-lo mostrando todo o mal da ditadura em que vivíamos. No inicio do quinto ano de existência do boletim e depois de três anos a trabalharmos em comum o Dr. Gautier, devido a ter ocupado um cargo directivo na TAP, foi obrigado, por indisponibilidade de tempo, a deixar o cargo que ali desempenhava. Foi substitui-lo alguém com quem pensei que iríamos trabalhar sem dificuldades até porque, nas várias conversas que havíamos tido anteriormente, se tinha sempre mostrado crítico ao regime. Puro engano meu. A tendência era para, sem deixar a divulgação técnica, passar a ser também um órgão de propaganda governamental recheado de palavras de gratidão ao ministro das corporações e previdência social. O nº. 17 de “O Escritório”, primeiro da nova direcção, já não me tinha como chefe de redacção embora, indevidamente, o meu nome ainda lá figurasse. Tinha pedido a demissão por não concordar com a inserção de uma frase de Salazar na contracapa da revista e dos louvores ao ministro. Irtonia do destino. Com um admirador de Salazar consegui trabalhar durante todo aquele tempo; com alguém que se dizia crítico ao regime não foi possível porque não passava de um oportunista. Mais tarde, falando com o Dr. Gautier sobre isto, ele disse-me: “Agora já te posso dizer. Quando informámos o ministério das corporações que ias ocupar aquele lugar, o ministério informou que não eras “persona grata” ao governo. Guardei a carta na gaveta e ocupaste o lugar”. Mais tarde fui também para a TAP e trabalhámos bastante juntos pois ele era o Presidente do Grupo Cultural e Desportivo da TAP. Todas as minhas iniciativas tiveram sempre a sua colaboração e não regateava meios para que elas se pudessem concretizar. Foi assim com o rali, com o grupo de teatro, com a equipa de tiro, com o concurso de pesca desportiva, com as festas de Natal para os funcionários da companhia. Sempre tive o seu apoio e colaboração. Nunca esqueço uma frase que me dizia sempre: “ Meu filho, se o que fizeres for perfeito e grande ninguém pergunta quanto custou. Se fizeres uma merda reclamam um tostão que seja. Apesar da sua admiração a Salazar nunca alinhou com o fascismo nem com os seus métodos. Foi um verdadeiro amigo que recordo com muita saudade.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O MEU AMIGO AFRICANO

A guerra terminara há pouco e o mundo vivia um ambiente de esfuziante alegria. Ao fim de seis tenebrosos anos, a longa noite terminara e, de novo, a paz incutia nos homens a esperança de que os crimes que envolveram a humanidade jamais se repetiriam. Vivia-se ainda no meio dos destroços e da miséria ocasionados pelos crimes originados por uma quadrilha de loucos cegos pela ambição de um monstro que quis dominar o mundo. Mas só o facto deste longo pesadelo ter terminado e o sonho que jamais se poderia repetir dava forças ao povo para, pleno de alegria, se entregar à reconstrução dos seus países. Em Portugal, continuávamos a viver em ditadura mas com a ilusão que o fascismo fora varrido da face da terra e não tardaria que também aqui a democracia chegasse. Também aqui vivíamos um sonho que só muito mais tarde se viria a concretizar. Para que o sonho se tornasse realidade despoletávamos várias iniciativas tendentes a juntar os jovens em jornadas de confraternização e esclarecimento. É uma dessas acções que estou recordando. Um encontro de jovens de Lisboa, Amadora e Queluz perto da Ponte de Carenque. Quando caminhávamos para o local do encontro, conversando e cantando, juntou-se a mim um jovem africano, cerca de seis anos mais velho, que entabulou conversa comigo. Irradiava simpatia com o seu dinamismo contagiante e grande sentido de humor. Em suma com uma enorme capacidade de criar amizades. Disse-me que chegara há pouco a Portugal e que estava a tirar o curso de agronomia. Durante a caminhada e o encontro falámos de mil e uma coisa, numa comunhão de ideias que muito nos aproximou. Depois deste dia, encontrámo-nos várias vezes até porque tínhamos uma amiga comum que vivera algum tempo em minha casa: a poetisa de S. Tomé Alda Espírito Santo. Sensibilizava-me sempre a simpatia, entusiasmo e alegria que punha nas conversas qualquer que fosse o assunto que versasse. Entretanto, deixei de estudar, empreguei-me e passei pela prisão. Ele terminara o seu curso e empregara-se. Não com muita assiduidade, encontrávamo-nos de vez em quando. Mas, em determinada altura, passei bastante tempo sem o ver e sem saber dele. Havia ido trabalhar para a Guiné. Passado tempo, um dia, estava casado há pouco, passeava com a minha mulher quando o revi na Praça D. Estefânia. Tinha vindo a Portugal. Ia bastante apressado mas parou, sempre com a mesma simpatia e alegria, para me falar. Apresentei-o a minha mulher mas ele pediu desculpa de não poder estar mais tempo a falar connosco pois tinha de se apresentar na PIDE e já ia atrasado. Nunca mais o vi, mas fui sabendo da sua actividade em prol da independência do seu país. Mais tarde, soube com tristeza que havia sido assassinado por membros do seu movimento num atentado dos muitos que não tinham resultado. A PIDE tinha colaborado em várias tentativas para o matarem que sempre haviam falhado. Mas, daquela vez, parece que inspirado por Séku Turé, que via nele o impeditivo de realizar o seu sonho de anexar a Guiné-Bissau para criar a “Grande Guiné”, o atentado resultara. Para o mundo, Amílcar Cabral o ideólogo e líder que conduziu a luta do seu povo à independência da Guiné e de Cabo Verde, será sempre o mais esclarecido dirigente africano da sua geração e o principal teórico da luta armada africana de libertação. Para mim será sempre aquele jovem poeta africano alegre e simpático que conheci num encontro de jovens, junto à Ribeira de Carenque.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O FEZ DO QUEIPO DE LLANO

Devia ter os meus sete anos quando se deu o episódio que vou relatar. Meu Pai era gerente do Motor Palácio, estação de serviços propriedade do Engº. Abel Pessoa que ali tinha também o escritório de uma empresa que pretendia criar uma rede comercial de aviação. Era um edifício na Rua Actor Tasso, junto ao Marquês de Pombal, no local onde hoje se ergue um grande edifício. O Engº. Abel Pessoa, grande entusiasta da aviação tirara o brevet e já havia tido um avião (o Águia Branca I) que substituíra por outro maior (o Águia Branca II) com capacidade para cinco pessoas. O seu sonho nunca se veio a concretizar porque, num domingo, quando se dirigia à Figueira da Foz, num voo publicitário daquela ideia, o “Águia Branca II” caiu no mar, perto de Santa Cruz, tendo morrido o engenheiro e os quatro amigos que o acompanhavam. Mas, voltando à nossa história, eu, quando não tinha escola, costumava ir com o meu Pai e ali passava o dia, distraindo-me conforme podia e fazendo, certamente, muitas diabruras próprias da idade. Um dia, em que a estação de serviços se encontrava a abarrotar devido a um encontro que trouxera a Lisboa alguns espanhóis, vagueava por entre os automóveis sem saber o que fazer quando vejo, dentro de um dos carros, um fez vermelho com uma grande borla preta que chamou a minha atenção e me tentou para a asneira. Não tardou que ele não estivesse na minha cabeça mas, não satisfeito e porque aquilo não me satisfazia, não tardou que à falta de uma bola o fez a fosse substituir. E o brilhante chapéu ali andou de reboleta à conta de pontapé para aqui, pontapé para acolá até que meu Pai, vendo aquilo, me fez parar e vi o caso mal parado pois quase que, pela primeira vez e única, ia apanhando. Mas tudo não passou de uma grande “ralhuça” e de uma grande preocupação para meu Pai pois o fez estava cheio de nódoas de óleo. Quando chegou o proprietário do carro, o terrível general Gonzalo Queipo de Llano y Sierra conquistador de Sevilha na Guerra Civil onde granjeou o cognome de “O Carrasco de Sevilha” devido ao massacre que ali fez, meu Pai explicou-lhe tudo que se havia passado, pedindo-lhe imensa desculpa (as coisas que nós fazemos passar aos nossos Pais) e prontificou-se a pagar outro fez. Mas o general, afivelando a sua máscara simpática (todos os tiranos gostam de representar bondade), disse que não tinha importância nenhuma e que até achara graça, fez-me uma festa na cabeça e ainda por cima me premiou com uma grande fotografia que retirou do porta bagagem onde possuía muitas, autografou-a e ofereceu-me para que me lembrasse dele como meu amigo. E aí fui eu para casa, todo inchado com aquela porcaria mas que, naquela idade, tinha um valor incalculável, depositando-a no móvel da casa de jantar para que todos pudessem ver aquela preciosidade e a importância que eu tinha. No dia seguinte, manhã cedinho, mal me levantei corri para ver a minha “querida” fotografia. Oh decepção! Oh tragédia! Que grande desgosto! A fotografia tinha uma barba pintada, e uns óculos e, ainda por cima, os olhos furados. Meu irmão, já na altura antifascista, ao ir deitar-se e ao ver aquele fotografia não descansou enquanto não aliviou a sua reacção de ver tal figurão em nossa casa. Eu barafustei e chorei até me passar o desgosto de ver o estado em que se encontrava aquele meu “GRANDE” amigo. E assim terminou, felizmente, a minha relação com O MEU “AMIGO” FASCISTA

quinta-feira, 31 de julho de 2014

AS ASAS DO PENSAMENTO

Quanto mais os anos passam mais as asas do pensamento voam através do tempo pousando nos mais variados acontecimentos de uma vida já com oitenta e quatro anos. Uns alegres, outros tristes; uns que me encheram de felicidade, outros de profundo desgosto; uns importantes, outros insignificantes mas todos presentes com uma actualidade e uma força que me enche de uma saudade tão grande, tão grande, que até doe. Diariamente, o pensamento voa sem descanso recordando toda uma vida que, apesar de ter tido momentos muito difíceis, considero não ter podido ser melhor pois deu-me uma companheira que dedicou toda a sua vida a tornar-me feliz a mim e aos nossos três filhos que, cada um à sua maneira, me têm apoiado com carinho e ainda porque tenho seis netos e um bisneto que, uns mais outros menos, me têm dedicado muita amizade. Além disso, um feitio irrequieto e decerto modo empreendedor, levou-me a dedicar-me às mais variadas coisas do desporto à cultura, passando pela política, a tudo me entregando sempre com um entusiasmo total. Mas o desejo de abarcar o máximo de coisas possíveis levava a que, da mesma forma que me dedicava totalmente a uma coisa, depressa a largava para caminhar para outra. Minha Mãe dizia, e minha mulher depois repetia, que apesar do entusiasmo que punha em tudo aquilo que fazia rapidamente me fartava e as abandonava. Não compreendiam que eu não me cansava nem deixava de pensar em tudo aquilo que fizera com tanto entusiasmo, mas a verdade é que sentia necessidade de partir para outra experiência. A vida era curta para tudo o que eu pretendia conhecer e viver. No desporto pratiquei andebol, tiro, esgrima, vela, equitação e automobilismo, todos com entusiasmo e gosto mas sem a preocupação de me tornar muito bom porque isso obrigaria a dedicação exclusiva a alguma das modalidades. Fazia-o por prazer e não para me escravizar. Assim, fui praticante, dirigente e organizador. Ali deixei alguma coisa de mim, nunca pedi nada pelo pouco que fiz mas tive a recompensa de criar amizades e, ainda hoje, recebo provas de afecto de pessoas, algumas crianças na altura, mas que me tratam com uma afeição que muito me sensibiliza. Gostava do desporto, mas como poderia eu dar-lhe muita atenção se tinha uma paixão maior: a CULTURA Todo o tempo livre que o emprego me deixava ou estava entregue à leitura de um bom livro, ou estava a assistir à projecção de um filme ou de uma peça de teatro, ou de um concerto, ou de uma ópera, ou de um ballet, ou a ver uma exposição. Corria de um lado para o outro para não perder nada, sempre com o mesmo entusiasmo, talvez até com um certo exagero. Exagero tal que, uma vez, num só dia vi cinco filmes em cinco cinemas diferentes. Comecei no Cinema Império com uma sessão que faziam nas manhãs de domingo, durante a tarde assisti a duas matinées, à noite a mais uma projecção e terminei na sessão da meia-noite do S. Luís. No Coro do Maestro Fernando Lopes Graça cantei e as exibições que fazíamos eram acompanhadas de uma parte de poesia ditas por duas grandes declamadoras: Manuela Porto ou Maria Barroso.Mais tarde estes espectáculos passaram a ter duas partes. Uma de música e a outra de teatro com o grupo criado por Manuela Porto que deu a conhecer Tchekhov, Pirandelo e Gil Vicente a populações que, até ali, pouco ou nenhum teatro tinham visto. A minha paixão pelo teatro levou-me a desejar entrar para o grupo de Manuela Porto e tinha a sua promessa de participar na próxima peça que pusesse em cena. Porém, isso nunca veio a suceder porque Manuela Porto suicidou-se e o grupo só realizou mais um espectáculo em sua homenagem com uma das suas peças mais bem conseguidas: “O Aniversário do Banco” de Tchekhov. Como homenagem aquela grande Senhora do Teatro, quis participar simbolicamente fazendo com o meu amigo, e já na altura grande actor, Rogério Paulo dois membros da delegação que entravam mudos e saiam calados. No teatro assistia a todas as peças que podia, quer no teatro profissional quer no amador; criei três grupos de teatro, organizei conferências, encenei, representei e fiz teatro radiofónico. Ainda me restou tempo para participar nas direcções de algumas colectividades (Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal, Federação Portuguesa de Campismo, Clube de Futebol Os Belenenses, Sporting Clube do Huambo e ATCA – Automóvel e Turing Clube de Angola), sem desprezar uma actividade política bastante activa que originou que eu festejasse o meu 19º. aniversário nos “curros” do Aljube e, após 25 de Abril uma longa participação autárquica e sindical. Este é o resumo de uma vida preenchida com mil e uma coisas, sem nunca desprezar o acompanhamento da mulher e dos filhos. Ao longo dela tive oportunidade de conviver com actores, escritores e desportistas dos quais sempre recebi atenções e com alguns dos quais criei laços de amizade. É sobre isto tudo, sobre todos os acontecimentos, sobre todos os pormenores por mais pequenos que tivessem sido que o pensamento voa, me recorda e deixa aquela saudade tão grande que, como dizia no princípio, chega a doer. Foi para registar tudo isto que criei o meu blogue “Voando no Tempo” onde diariamente iria registando tudo que ia acontecendo e tudo de que me ia lembrando. Infelizmente, tenho de confessar que, uma coisa terrível que se chama “preguicite”, aparece-me sempre a contrariar e a impedir de relatar tudo aquilo que desejava. Vou fazer mais uma tentativa de vir aqui com frequência e tentar vence-la. Há tanta coisa que desejo registar e tantas que pensei faze-lo na altura em que ocorreram e que perderam a oportunidade. A vontade de registar tudo é grande, mas não prometo nada.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

SAUDADE

Que dia tão triste em que apenas a saudade, uma saudade cada vez maior, domina o meu pensamento. Foi há cinco que tudo à minha volta se tornou mais triste, que uma dor tão grande, tão grande, me dominou e eu não sabia como poderia resistir a tão grande perda. Cinco anos, minha querida Teresinha. Cinco anos que a tua companhia me deixou e tudo à minha volta se tornou mais escuro. Há cinco anos que continuo esta difícil caminhada em que te recordo com esta tristeza impossível de descrever. Há cinco anos que,constantemente, sinto a falta do apoio que sempre me deste em todos os momentos difíceis e que me davam forças para continuar. Há cinco anos, meu querido amor. Quantos mais faltarão.

quinta-feira, 6 de março de 2014

FAZIA HOJE 85 ANOS!

Numa mensagem, que hoje me enviou, o Nuno dizia: “Hoje é um dia que é fácil entender a palavra saudade”. É bem verdade, meu filho. E cada ano que passa a saudade é maior. A minha querida Maria Teresa, se fosse viva, fazia hoje oitenta e cinco anos e este dia que durante tantos anos foi de felicidade e alegria, tornou-se num dia triste em que apenas reside a saudade e a recordação daquela que se entregou totalmente ao marido e aos filhos para lhes proporcionar tudo o que eles necessitavam. Que falta fazes a todos nós, minha querida Teresinha. Queria transportar para a escrita tudo o que neste momento estou sentindo mas sou incapaz de o fazer porque a tristeza não me permite e apenas as lágrimas inundam os meus olhos e boca balbucia: Como eu te adoro meu querido amor e como desejava ter-te junto a mim.