domingo, 9 de agosto de 2009

MORREU RAUL SOLNADO



“Nós, os do teatro, somos vendedores de sonhos.
O público compra um bilhete e não leva nada para casa.
Se entra numa loja e compra uma gravata, leva a gravata.
Aqui leva sonhos.”
Raul Solnado

Morreu um grande comediante!


Morreu um Homem Bom!

Com o falecimento de Raul Solnado, está de luto o teatro português. Está mais pobre Portugal.

Ao longo de uma vida a fazer-nos rir, fez-nos pensar, tentou que fossemos melhores, que o ajudássemos a transformar um mundo onde reinasse a paz, a poesia e o amor pelo próximo.

Como eu gostaria de ter talento para poder transmitir tudo aquilo porque este grande Homem pugnou, tudo o que ele sentia e como me reconheço impotente para o fazer.

Tentarei fazer um breve resumo da sua vida e de tudo que nos legou.

Solnado contava que. com quatro anos, um pombo amestrado pousou-lhe no ombro e, como se encontrava de tronco nu, cravou-lhe as unhas tentando segurar-se. Como isso lhe fizesse doer deu um grito “foda-xe”.Os amigos do pai, que se encontravam presentes, deram uma gargalhada mas aquele pô-lo de castigo no quarto.

“Era a minha primeira perplexidade. Tenho êxito, faço rir e sou castigado e vou preso. Que mundo é este onde cheguei”.

Assim, relata ele a primeira gargalhada das muitas que iria provocar ao longo da vida.

Como, na altura, as crianças ainda podiam ir ao teatro, corria com o pai todos os teatros de Lisboa o que o levava a dizer: “Quando for grande quero ser compère”.

Quando se empregou, com o que ganhava corria as gerais dos teatros chegando a ver a mesma peça três e quatro vezes.

Trabalhava de dia na Vassouraria da Esperança e estudava à noite na Escola Comercial Rodrigues Sampaio onde tinha, como companheiro de carteira, Varela Silva.

Numa festa de alunos, fazem os dois “Todo o Mundo e Ninguém” de Gil Vicente.

Na década de quarenta desencadeou-se um movimento, com origem nos artigos publicados por António Pedro no Diário de Lisboa, contra o pobre teatro que se encenava nalguns palcos portugueses, imitado pelos grupos de amadores, que originou o nascimento de uma série de agrupamentos a quem o teatro muito ficou a dever, movimento a que me referirei em detalhe num próximo artigo.

Entre estes, encontrava-se a Sociedade de Instrução e Recreio Guilherme Cossoul, verdadeiro alfobre de actores pois por ali passaram Jacinto Ramos, José Viana, Varela Silva, João Sarabando e outros.

Raul Solnado começou a frequentar aquela colectividade e faz “O Pedido de Casamento” de Tchekov, numa encenação de José Viana. Em 1951, inscreve-se no curso nocturno de “Arte de Dizer e Arte de Representar” mas, apesar de ter pago as propinas do ano todo, apenas frequenta uma aula. Dizia que ao Conservatório não devia nada, mas à Guilherme Cossoul devia os primeiros passos.

Depois de fazer a tropa, estreia-se, a 10 de Dezembro de 1952 no Maxime, como profissional a ganhar cinquenta escudos por noite.

Em 1953, Vasco Morgado assiste ao “show” e convida-o para entrar na primeira revista do Teatro Monumental, “Canta Lisboa”, com Laura Alves.

Ribeirinho, o encenador da revista, pergunta-lhe se não tem outro nome, considerando que Raul Almeida seria mais fácil de decorar. Mas, Raul, ao fim de uma semana, diz: “É Solnado. Se ninguém decorar paciência. É Solnado!”.

Na noite da estreia, a 14 de Fevereiro de 1953, como ninguém o conhecia e perguntavam quem era, dizia-se: “É o Solnado … desconhecido”. Dizia que o nome dele no cartaz vinha lá em baixo, ao lado do nome da tipografia.

Ali começou a sua aprendizagem com Laura Alves, Irene Isidro e Manuel Santos Carvalho e recebe a protecção inesperada de António Silva que lhe dava “deixas” diferentes para o obrigar a improvisar.

Quando Vasco Morgado monta a comédia “Ela não gostava do patrão” disse: “Ponham lá o puto que respondia ao António Silva”.

Trabalhou com Palmira Bastos, Irene Silva, Hermínia Silva, Vasco Santana, Assis Pacheco e Alves da Cunha. Destes Mestres recebeu influência e descobriu o orgulho profissional e a disciplina.

Ficava nos bastidores a assistir pois queria aprender a ser actor e dizia: “O meu Conservatório foram os bastidores dos teatros”.

Varela Silva, regressado de Paris, oferece-lhe um presente “Je Suis un Homme de Théatre” de Jean-Louis Barrault e ele, radiante, foi mostrá-lo a Teresa Gomes que lhe disse: “Ó filho não leias isso. Essas coisas não ensinam nada! Em cima das tábuas é que eles se querem ver!”.

Solnado dizia: “Havia em Portugal um grupo de actores que fariam inveja a qualquer país. Sentia-me honrado por trabalhar com eles”.

Em Dezembro de 1953 assina com Vasco Morgado um contrato de dois mil e quinhentos escudos por mês, mas chegada a época de verão e porque as receitas de bilheteira eram fracas, o Vasco propõe-lhe ficar a ganhar dois mil escudos quando houvesse espectáculos e mil escudos na altura dos ensaios. Como lhe surgira um contrato para o Apolo por três mil e seiscentos escudos, propõe ficar com o Vasco desde que este lhe pagasse tanto na altura dos espectáculos como dos ensaios, ou seja dois mil escudos. Este não aceita e vai-se embora dizendo que só regressará a ganhar seis mil escudos.

Vai para o Apolo onde trabalha ao lado de Milu, Curado Ribeiro e Santos Carvalho. Em 1954 trabalha com o grande Mestre Alves da Cunha que, até morrer, fica seu amigo.

Quando regressa à companhia de Vasco Morgado é, de facto, com seis mil escudos mensais e um camarim de duas assoalhadas.

Faz, então, “Não faças Ondas” com um elenco excepcional: Villaret, Milu, Costinha, Leónia Mendes e Carlos Coelh. Solnado tinha três excelentes rábulas: “Ali-Baba”, “Alfacinha de Gema” e “O Canalizador”, um dos vídeos com que ilustramos este artigo.

Em 1957 estreia-se na RTP e, entre 1956 e 1987, interpreta vários filmes entre os quais “Perdeu-se um marido”, “Sangue Toureiro”, “O Tarzan do 5º.esquerdo”, “As Pupilas do Senhor Reitor”, “Requiem”, “Senhor Jerónimo”, “O Bobo” e “Balada da Praia dos Cães”. Mas, de todos destaca-se “Dom Roberto”, momento histórico do cinema português, realizado por José Ernesto de Sousa, nos anos 60, que era como que um desafio contra o regime político no poder e que teve Raul Solnado como protagonista.

A 15 de Agosto de 1958 estreia-se no Brasil com “Agora é que são elas”, autêntico fracasso e ao fim de seis meses com os salários em atraso, recebe uma proposta de contrato a assinar com a TV Tupi.

Mas um almoço com amigos portugueses, para fazerem frente ao bacalhau, azeite e vinho que o pai lhe havia enviado, em que se falou e chorou com saudades de Portugal, alterou-lhe o rumo e, findo o repasto, em vez de ir assinar o contrato foi tratar de passagem para Lisboa.

Viajou na 3ª.classe do Vera Cruz, mas considerou a viagem mais luxuosa que fez visto que, dados os poucos passageiros, o comandante transferiu-o para a primeira classe.

Vasco Morgado queria-o de volta à sua companhia, mas esqueceu-se do encontro que havia marcado para assinatura do contrato e Raul vai para o ABC.

Da revista envereda para a comédia com “A Tia de Charley”, um travesti já interpretado por João Villaret, Augusto Figueiredo e Costinha. Solnado teve o mérito de nunca se assemelhar aos actores que o antecederam.

Representava “A Tia de Charley” quando António de Cabo (com quem tive o prazer de conviver em Luanda) lhe trouxe o disco de Miguel Gila “História da Guerra”.

Entusiasmadíssimo com o texto, aproveita uma digressão ao Funchal com Humberto Madeira para, muito a medo, contar a história para ver a reacção do público, ficando admirado com a explosão de gargalhadas que provocou.

Receoso ainda com o resultado, volta a fazer a experiência numa festa realizada no ringue de patinagem de Oeiras e obtém idêntico resultado.

Resolve então dize-lo num ensaio da revista que iria fazer, mas porque havia bastante azáfama com a montagem do espectáculo a sua intervenção não mereceu qualquer atenção o que levou o ensaiador Rosa Mateus a não querer a inclusão daquele número o que leva Solnado a dizer que ou contava a história ou não entrava na revista.

Nelson de Barros corta relações com ele porque queria que ele fizesse um terceto e não aquele número.

No ensaio para a censura leu o texto apressadamente e o mesmo passou, apenas com a intervenção muito simpática de um dos censores que lhe disse que tinha que cortar uma coisa: “Você fala na guerra de 14 e isso não pode ser”. Raul perguntou se podia ser de 1908 e ele disse que isso à vontade.

Foi o ponto alto da revista e um dos mais altos da sua carreira.

Depois de uma digressão a Angola, influenciado pelos teatros de bolso que vira no Brasil, começa a pensar na construção de um o que o leva a uma longa batalha de 1963, ano da concepção, até estreia em 1965.

Entretanto, em 1964, volta ao Brasil levando Baptista Bastos como secretário e, desta vez, obtém um grande êxito.

Baptista Bastos tinha sido despedido do Século por ter estado envolvido da Revolta da Sé e trabalhava na República com o vencimento de dois mil escudos. Solnado ofereceu-lhe um vencimento de seis mil escudos e levou-o com ele.

O Teatro Villaret é inaugurado a 10 de Janeiro de 1965 num espectáculo memorável com a peça “O Inspector Geral” de Gogol. Na abertura, Luis Francisco Rebelo diz que aquela inauguração é a homenagem de uma geração teatral ao grande João Villaret no ano em que se comemorava o quinto centenário de Gil Vicente.

O novo teatro, único construído por um actor, apresenta um excelente número de peças, mas representa para o Raúl uma luta titânica pois iniciara a obra com cinquenta contos e for obrigado a assinar um número enorme de letras. Representava a pensar se, no dia seguinte, havia dinheiro para a letra.

Para fazer face aos encargos, em dois anos fez 1 220 espectáculos e só teve dois dias de descanso: o dia de Natal e Sexta-feira Santa.

Numa conversa com Fialho Gouveia (outro meu Amigo já desaparecido), surge a ideia de criar o Zip-Zip, ideia a que se junta também Carlos Cruz.

Este programa surge a 26 de Maio de 1969 e durante sete meses provoca profundas alterações de espírito e de comportamento.

O Zip-Zip, que nascera sem nome, sem definições e sem contornos concretos, torna-se num programa de televisão atento aos indícios de transformação do mundo.

O 25 de Abril encontra-o na Roménia pois conseguira uma autorização especial da polícia e limitada aquele país para satisfazer o seu desejo de visitar um país do leste. Quando telefonou para Lisboa e lhe disseram que houvera uma revolução, pensou que estavam a brincar.

Mas, em finais de 1975, desiludido, faz a denúncia dos excessos cometidos naquele ambiente escaldante: “O 25 de Abril foi para mim uma vertigem deslumbrante que logo se transformou num espectáculo degradante pelo qual os Portugueses pagam um bilhete caríssimo. Temos assistido a uma onda crescente de ódio, à intolerância, às vinganças pessoais e ao triunfo da incompetência.

Estamos exaustos de viver nesta paranóia colectiva. Temos de nos agarrar à esperança de que o bom senso acabará por prevalecer, o que é inevitável. A festa dos cravos foi muito bonita, mas está aí a conta da florista”.

Em Dezembro de 1975 alcança outro grande êxito, no Teatro Maria Matos, ao interpretar “Schweik na Segunda Guerra Mundial”.

Em Dezembro de 1978 aparece, durante dezasseis horas, na RTP, a realizar a “Operação Pirâmide” que rendeu mais de cem mil contos a favor da Cruz Vermelha Portuguesa. À imprensa disse: “Será um momento de reflexão que poderá funcionar como um pára-choques para nós, nós que temos andado todos muito zangados uns com os outros. Somos um país zangado, temos de fazer as pazes”.

Com Armando Cortês, entregou-se à ideia da construção da Casa do Artista, sociedade de apoio aos artistas, de que foi director até morrer.

Ao longo da vida, Raul Solnado, imaginou projectos, lutou por objectivos e empolgou-se com ideias, deixando-nos a mensagem: Façam o favor de serem felizes.

Leitão de Barros, num autógrafo, escreveu: “Para o Raul Solnado que nasceu na Esperança e chegou à certeza de ser o maior actor do seu tempo”.

Fonte: “Raul Solnado – A vida não se perdeu” de Leonor Xavier





1 comentário:

  1. Da Casa do Artista, instituição que fazia mta falta, guardo uma mágoa profunda. Pq eu tinha uma tia q era artista de teatro, sempre contribuiu para a "Casa" onde esperava passar os seus últimos dias...

    Sim, Solnado um homem bom.

    Para mim, era um comediante nato.
    Foi pegando em paródias non sense de um seu amigo de (creio) Pamplona, que fez êxito com coisas como a do soldado da guerra fechada para descanso...

    De resto, como está muito bem descrito, entregou sempre a sua imagem a causas nobres.

    ResponderEliminar