sábado, 22 de agosto de 2009

O SONHO E A OBRA - 1951 - A ULTRAPASSAGEM



Mil novecentos e cinquenta e um é recordado, frequentemente, pelos historiadores como o ano em que a jovem marca bateu a "sua mãe" como Enzo Ferrari definia a Alfa Romeo, empresa onde passara vinte anos da sua vida e onde aprendeu todos os segredos do ofício.

O ano havia começado bem com as duas vitórias que Froilàn Gonzalez "O Touro dos Pampas" havia obtido durante a "Temporada Argentina" contra os Mercedes, embora estes se tratassem de modelos de antes da guerra.

Gonzalez guiava um 166 "fórmula livre" com motor de dois litros com compressor contra os três "flechas de prata" com motores de três litros, pilotados por Juan Manuel Fangio, Herman Lang e Karl Kling, batendo-os a 18 e novamente a 25 de Janeiro.

Enzo Ferrari enviou-lhe um telegrama de felicitações. Estava aberto o coração do Comendador e, automaticamente, as portas de Maranello.

Os três primeiros grandes prémios de Fórmula 1 realizaram-se na Suiça, Bélgica e França (sem contar com as 500 Milhas de Indianapolis que pontuavam para o campeonato mas não eram aceites pelos europeus) foram ganhas pela Alfa Romeo, mas com a presença constante da Ferrari na segunda posição.

No Grande Prémio da Suiça, realizado em Bremgarten a 27 de Maio, a Alfa Romeo conquistou o primeiro e terceiro lugar, respectivamente, com Juan Manuel Fangio e Giuseppe Farina, mas no meio ficou Piero Taruffi em Ferrari.

A 17 de Junho em Spa, no Grande Prémio da Bélgica, a Alfa Romeo conquistou o primeiro lugar com Giuseppe Farina, mas em segundo e terceiro lugar ficam os Ferraris de Alberto Ascari e Luigi Villoresi.

No Grande Prémio de França, realizado em Reims a 1 de Julho, a Alfa Romeo com Juan Manuel Fangio volta a ganhar, mas a Ferrari volta a alcançar o segundo lugar com Alberto Ascari/Froilàn Gonzalez, o terceiro com Luigi Villoresi e ainda o quarto com o piloto britânico Reg Parnell.

Este resultado era um sinal evidente de que a mudança estava próxima.

E, de facto a 14 de Julho, no Grande Prémio da Grã-Bretanha em Silverstone, deu-se a histórica ultrapassagem onde Gonzalez ao volante de um monolugar tipo 375 bateu o esquadrão comandado pelo seu conterrâneo Juan Manuel Fangio.

Nesta corrida verificou-se que, já nessa altura, as corridas podiam ser ganhas nas boxes, pois a Ferrari beneficiava de fazer menos paragens para reabastecimento em virtude do seu motor aspirado consumir menos que os sobrealimentados da sua rival Alfa Romeo.

A luta entre as duas equipas italianas que já se havia iniciado nos treinos, continuou durante toda a corrida com diversas mudanças no comando.

Quando Fangio entrou nas boxes, à 49ª. volta, para reabastecer, Gonzalez assumiu o comando.

Por sua vez, Gonzalez entrou para reabastecer com 61 voltas percorridas e pensou que Ascari, que havia desistido com a caixa de velocidades partida, tomasse o volante do seu carro usando da prerrogativa de primeiro piloto. Mas este indicou-lhe que continuasse e, assim, Gonzalez saiu para a pista sem perder a liderança que manteve até ao fim, apesar de Fangio ter feito tudo que sabia para o ultrapassar.

A prova terminou com a Ferrari a ocupar o primeiro e o terceiro lugar alcançado por Villoresi, tendo Fangio conquistado o segundo.

Em 1951, a televisão ainda não transmitia as corridas de Fórmula 1 e, por isso, a notícia desta vitória demorou a chegar a Maranello, por via telefónica, onde Enzo Ferrari se encontrava sozinho no escritório para saborear a alegria que uma das suas "jóias terríveis" lhe havia proporcionado. Mas, o dia seguinte proporcionou-lhe um momento inesquecível ao receber um telegrama de felicitações do presidente da Alfa Romeo a que Enzo respondeu com uma comovente carta em que, recordando os vinte anos passados na Casa Milanesa, dizia: "ainda sinto pela "nossa" Alfa a ternura que o adolescente sente pelo seu primeiro amor".


QUASE CAMPEÃO

Faltou pouco para que Alberto Ascari conquistasse, já em 1951, o título de campeão mundial.

Chegados à última prova, o Grande Prémio de Espanha, disputado em Pedralbes (Barcelona) a 28 de Outubro, Ascari encontrava-se empatado em pontos com Juan Manuel Fangio.

Um problema com os pneus e nunca esclarecido se motivado por defeito de fabrico ou por qualquer erro entre os técnicos dos pneus e os coordenadores dos carros sobre o composto a usar nesta corrida, criaram problemas que não se haviam verificado nas outras e tiraram a Ascari a possibilidade de conquistar o título.

A equipa Ferrari tinha optado por encher os depósitos a fim de poderem fazer toda a corrida sem paragens e escolheram jantes e pneus mais pequenos que os habituais.

Ascari, que comandava a prova, conseguiu aguentar a pressão de Fangio até à oitava volta, altura em que um dos pneus ficou sem rasto.

Fangio nunca mais deixou de comandar e ganhou a corrida conquistando o seu primeiro título de campeão.

Todos os Ferraris tiveram problemas de pneus não conseguindo mais que um segundo lugar alcançado por Froilàn Gonzalez.


ACTIVIDADE DESPORTIVA PLENA

De qualquer modo, mil novecentos e cinquenta e um, foi um ano rico, pleno de êxitos no campo desportivo.

Em Fórmula 1, os quatro pilotos da equipa: Alberto Ascari, Froilàn Gonzalez, Piero Taruffi e Gigi Villoresi tinham obtido uma série de resultados importantes para além da já citada vitória de Gonzalez em Inglaterra.

Alberto Ascari havia ganho o Grande Prémio da Alemanha, realizado em Nurburgring a 29de Julho, seguido de Fangio e Gonzalez e o Grande Prémio da Itália, realizado em Monza a 16 de Sertembro, seguido de Gonzalez e de Giuiseppe Farina, este último em Alfa Romeo.

Com este resultado a Ferrari conquistou a sua primeira dobradinha no campeonato mundial.

Estas duas vitórias permitiram a Ascari o número suficiente de pontos para poder discutir o título de campeão do mundo na última prova, em Barcelona. O seu monolugar tipo 375, na versão de 1951, com uma potência declarada de 370 CV a 6 600 rpm pode ter estado na origem do problema com os pneus que o impediram de lutar pela conquista do título.

Outro passo muito importante foi o das Mil Milhas onde a Ferrari, desta vez com Gigi Villoresi acompanhado do mecânico Cassani num 340 América com motor da família "Lampredi", voltou a triunfar.

É interessante referir que existiu um grande interesse da Ferrari pelas "500 Milhas de Indianapolis" enviando um técnico a assistir aquela corrida. Embora não tenha participado, foi elaborado um relato minucioso contendo todos os elementos de avaliação necessários a uma preparação tais como traçado do circuito com detalhes das inclinações da pista e das curvas, tempo de prova dos diversos concorrentes assim como o método de verificação das viaturas.

Outro resultado com ressonância mundial foi, sem dúvida, o obtido pelos dois carros tipo 212 Inter de 2 562 cm3 na Panamerica México, uma prova massacrante numa distância de mais de 3 000 quilómetros, em condições climatéricas que iam do calor tórrido a nível do mar até altitudes superiores a 3 000 metros.

As tripulações formadas por Taruffi e Chinetti e por Ascari e Villoresi classificaram-se em primeiro e segundo lugar superando os grandes carros americanos de cilindrada muito superior.

Esta vitória teve uma produtiva repercussão da marca nos EUA, mercado que Ferrari ambicionava conquistar.

Por isso, outro modelo apresentado foi um grande turismo tipo 342 América que visava uma clientela de elite. Tratava-se de uma evolução do 340 América cuja principal modificação foi a de permitir um maior espaço à cabine, permanecendo todas as principais características tais como as suspensões dianteiras independentes com mola de lâmina transversal e as traseiras com eixo rígido.

O primeiro exemplar AL, produzido em 1951, no chassis 0130 teve uma carroçaria de autoria de Ghia, numa versão 2 + 2.

O nome destes modelos já indicavam a vocação para um mercado destinado a tornar-se muito importante para o "Cavallino Rampante" e tradicionalmente habituado a cilindradas altas.

Os automóveis Ferrari da série "América" e da seguinte "Superamérica" ofereciam vantagens em relação aos automóveis comuns pois possuíam características de velocidade e de comportamento em estrada não imagináveis até então.

Do tipo 342 A "América" foram construídos outros seis exemplares
compreendidos no restrito número de chassis de 0232 a 0246, o primeiro com carroçaria de Vignale e todos os outros de Pinin Farina.


UM NOVO MOTOR

Entretanto, a tempestade estalava sobre a Fórmula 1.

O desinteresse das grandes marcas pela onerosa F1 e o facto do seu regulamento estar destinado a ser alterado em 1954 com o limite de cilindrada fixado em dois litros e meio para os motores aspirados e 750 cm3 para os sobrealimentados provocou o
abandono antecipado da F1, originando que o campeonato mundial de pilotos nas épocas de 1952 e 1953 se realizassem com carros de Fórmula 2, ou seja com motores aspirados de 2 litros.

Ferrari pensava no futuro, apesar de ter já à sua disposição o experimentadíssimo motor 166 de 12 cilindros.

Lampredi tinha outra ideia: um motor de quatro cilindros em linha, com comando duplo de válvulas à cabeça. Mesmo sabendo que teriam um curso maior e uma maior superfície de êmbolo que o correspondente V12, que chegou a ser experimentado numa versão de dois litros, Lampredi estava mais preocupado em obter um melhor binário e em economizar peso.

Nos seus cálculos, uma redução do peso do motor em 52 kg (de 181 para 129) equivaleria a um aumento da relação peso/potência de uns 15%.

Com a sua intuição, Ferrari compreendeu imediatamente que Lampredi havia tirado da manga outra carta vencedora.

Segundo a versão de Lampredi, a sua ideia concretizou-se num domingo de primavera em que, como acontecia com frequência, se encontrou na fábrica com Ferrari para trocarem impressões sobre a nova regulamentação.

Exposta a sua ideia, Ferrari pediu-lhe que, com rapidez, fizesse um esboço do projecto para que a sua concretização ficasse completamente desobstruída. E para não se perder tempo, foi ao bar, em frente da fábrica, buscar algumas "sandwiches" e uma garrafa de Lambrusco.

O técnico, que nunca abandonava o seu material de desenho, de imediato projectou o propulsor 625 para a Fórmula 1, prontamente transformado num 500 de Fórmula 2.

Com a habitual nomenclatura adoptada em Maranello, os números em questão significavam um motor de dois litros e meio para a F1 e de dois litros para a F2.

A versão maior tinha um diâmetro e curso de 94 x 90 mm e uma cilindrada unitária de 624,6 cm3 num total de 2 498 cm3 e a versão menor com um diâmetro e curso de 90 x 78 mm, uma cilindrada unitária de 496,2 cm3 e total de 1 984 cm3.

Desta forma, o motor 625 foi produzido para se estrear a 2 de Setembro no Grande Prémio de Bari numa viatura pilotada por Piero Taruffi que alcançou o terceiro lugar, atrás do vitorioso Juan Manuel Fangio que guiava o Alfetta e do outro argentino Froilàn Gonzalez ao volante de um Ferrari 375, ou seja atrás dos dois carros mais competitivos da F1.

Além das referências usuais às vitórias do ano, aos pilotos melhor sucedidos, aos colaboradores e amigos, no anuário de 1951, logo no princípio como ideia predominante, via-se o desenho em transparência do monolugar F2. Mas, Enzo Ferrari não esquecia também os seus fornecedores dedicando, a cada um deles, uma página de publicidade.


FERRARI E "PININ" FARINA

É digno de registo outro acontecimento em 1951, da maior importância para a história da empresa, que foi o encontro entre Enzo Ferrari e Battista "Pinin" Farina originário de uma extraordinária colaboração entre o construtor e o estilista de carroçarias, colaboração que perdurou mesmo após o desaparecimento dos dois.

É necessário reportarmo-nos ao ambiente industrial daquele tempo para compreender este facto.

Ferrari e "Pinin" Farina eram já famosos, cada um na sua actividade, e, em certo sentido, zelosos das suas prerrogativas. Assim, apesar dos recíprocos testemunhos de consideração e dos convites para um encontro construtivo, nenhum dos dois se decidia a dar o primeiro passo.

A solução encontrada foi a de um encontro a meio caminho entre Turim (sede de Pinin Farina) e Maranello e este acabou por realizar-se, em meados de Setembro, num pequeno restaurante em Tortona entre Enzo Ferrari, acompanhado do seu director comercial Gerolamo Gardini, e Battista Pini Farina, acompanhado de seu filho Sérgio.

Os dois compreenderam-se rapidamente e ficou decidido que Ferrari enviaria um chassis para ser trabalhado a tempo de estar presente no Salão de Genebra a realizar na primavera de 1952.

O engenheiro Sérgio Pinin Farina, filho de Battista, recorda-se que, durante a viagem de regresso, o pai o responsabilizara de garantir a continuidade de relações com o novo cliente que tinha fama de não ser fácil.

E, de facto, o trabalho realizado foi tão eficiente que esta colaboração manteve-se até aos dias de hoje o que deve ser considerada a mais duradoura no campo industrial.

NOTA: Este "post" é o resumo livre e aumentado do capítulo respeitante ao ano de 1951 da obra "L'Opera e il Sogno"

FONTES: "L'Opera e il Sogno", "Grand Prix - A história da Fórmula 1", "Bandeira da Vitória - A história do Automobilismo" e "Ferrari - 60 ans de scuderia"

Contribuído por Armando de Lacerda , Domingo, 14 de Dezembro de 2008 às 18:56


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