terça-feira, 13 de setembro de 2016

ERA UM HOMEM BOM. A UNITA MATOU-O

Eles virão e eu morrerei Sem lhes pedir socorro E sem lhes perguntar Porque maltratam. Eu sei porque é que morro Eles é que não sabem Porque matam. António Gedeão Um dia estava a trabalhar no meu gabinete no recinto da FINOL, quando vi aproximar-se o meu amigo Fernando Mira Godinho acompanhado de um indivíduo que apenas conhecera de vista numa reunião, já não me lembro onde nem a propósito de quê. Tinha simpatizado com ele pela forma violenta mas ao mesmo tempo cheia de beleza com que atacara os autores do derrube desmedido de árvores de madeira preciosa que se estava verificando em Angola. Embora já não me recorde bem da sua intervenção ele dizia, mais ou menos, “que não compreendia o prazer que sentiam em desnudar a floresta com o mesmo sadismo com que o faziam às mulheres”. O Fernando apresentou-me. Era o médico David Bernardino, irmão da Morena sua primeira mulher e mãe dos seus dois filhos, que estava construindo um jango para posto de saúde da população mais desfavorecida e vinha ver se eu tinha alguns materiais, excedentes da feira, que lhe pudesse dar. Levei-os ao armazém para escolher o que achasse útil, sem sequer atender se ainda eram necessários para o certame pois achei a ideia interessantíssima e digna de todo o apoio. Daí nasceu uma grande amizade entre nós que se foi solidificando à medida que o fui conhecendo melhor. Com este jango, para que contribuí correspondendo ao pedido que me fizera, nasce no bairro de Cacilhas, um dos mais populosos do Huambo, o primeiro centro de saúde de Angola. Com ele, o David pretendia demonstrar que era possível com as condições locais satisfazer os cuidados básicos de saúde. Uma das medidas, era a realização de sessões de esclarecimento sobre nutrição, problema que muito o preocupava e, para captar as pessoas, realizava sessões de cinema para as quais pediu a minha colaboração. Como, na Finol, tinha uma máquina de projectar e alguns filmes, o David pedia-me que desse umas sessões no jango. Reunia as pessoas e falava-lhes de higiene e nutrição e quando elas começavam a estar desatentas saía uma projecção de filmes, continuando depois a sua palestra até nova projecção e, assim, se ia mantendo a atenção das pessoas. Preocupado com os indícios de subnutrição verificados provocados por um baixo poder económico aliado à cópia dos hábitos alimentares da população branca, o David elucidava-os para a procura de uma alimentação tradicional mais fácil de conseguir e mais rica do que aquela que consumiam. Daí a falta de compreensão e de risota de alguns colegas por ele falar dos valores, equivalentes ao leite, da salalé, ou de aconselhar que procurassem os “sekulos” que lhes poderiam indicar os valores nutritivos de algumas lagartas. Apesar da ironia dos colegas, o David Bernardino era um humano e excelente médico que escolhi, a partir de determinada altura, para mim e para os meus familiares. À medida que o tempo passava a nossa amizade aumentava. Passávamos longos serões, ao som de música clássica, falando da sua Angola que tanto amava, do seu sonho de independência e dizendo poesia. Quando se deu o 25 de Abril rapidamente, em conjunto com o Engº. Marcelino, formámos o MDH – Movimento Democrático do Huambo com o objectivo de mentalizarmos as pessoas para a abertura à democracia, à futura e provável entrada dos movimentos de libertação e convivência entre todos. Este era o verdadeiro objectivo deste movimento ao contrário do que afirmou o escritor Agualusa, na notícia da sua morte, de que se destinava a lançar o MPLA. Qualquer de nós três era apoiante do MPLA por vermos que era o único com quadros capazes de dirigir os destinos de Angola mas não criámos antagonismos contra qualquer dos outros movimentos. De imediato, organizámos um grande comício presidido pelo Professor Henrique de Barros que se encontrava em Nova Lisboa, visitando sua filha. O David não resistiu ao desejo de ir a Lisboa ver e sentir o novo Portugal aonde esteve uma semana. Regressou radiante, não se cansando de contar, com aquela alegria que lhe era peculiar, tudo que vira e mostrando-nos uma tarjeta que a polícia colocava nos carros mal-estacionados solicitando, com toda a delicadeza, que não cometessem infracções. Mas no regresso, no aeroporto de Luanda, havia-se insurgido e mostrado toda a sua indignação ao ouvir os alto-falantes pedirem aos passageiros para se dirigirem aos balcões da DGS, afirmando em voz alta que a Pide já não existia. Quando regressei a Portugal, vinha preocupado porque sabia que o David se encontrava no quartel da tropa portuguesa onde se havia refugiado para não ser morto pela Unita que tomara conta de Nova Lisboa. Passado uns dias soube que ela tinha conseguido chegar a Portugal e corri ao Rossio, onde se juntavam as pessoas vindas de Angola, para o poder ver e abraçar, mas informaram-me que ele já havia regressado à sua Angola. Este Homem, médico, intelectual, lutador desde a primeira hora contra o fascismo e pela independência de Angola, foi docente universitário empenhado em várias acções no campo da investigação científica, director do jornal independente “Jango”, fundador dos cuidados primários de saúde angolanos, nunca abandonou o seu Huambo sempre envolvido no apoio aquela martirizada população. A 4 de Dezembro de 1992, à saída das consultas médicas do seu Centro de Saúde, David Bernardino é cobardemente assassinado pelos homens da Unita. Dias antes, tinham sido igualmente assassinados o Engº. Marcelino e a sua esposa Drª. Miete. Dos fundadores do MDH apenas eu escapara pois atrasaram-se em prender-me. ERA UM HOMEM BOM E GRANDE AMIGO. A UNITA MATOU-O!

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