terça-feira, 13 de setembro de 2016

VOANDO NO MUNDO DO TEATRO IV

Como dizia no capítulo anterior, o teatro estava definitivamente entranhado na vida do Centro de Aperfeiçoamento Profissional. Havia pessoas interessadas, havia boa vontade por parte da direcção do Centro e havia meios financeiros. Era altura de fazer mais do que a montagem de uma peça para a festa do fim do ano lectivo do Centro. Era altura de fazer alguma coisa que despertasse o gosto pelo teatro, alguma coisa que formasse bons actores, alguma coisa que desse a conhecer boas peças de teatro. Com muito amor e muito entusiasmo, lanço-me à concretização de um projecto ao qual dediquei todas as horas que tinha disponíveis e, assim, nasce o PROSCENIUM. Após algumas reuniões com a direcção do Centro, até conseguir a sua aprovação do projecto e garantia de apoio financeiro para a sua concretização, iniciámos um projecto que deu muitas horas de trabalho, muitas arrelias, momentos de muita alegria e, também, momentos de muita tristeza. Dos vários nomes pensados, optei por alguém que além de excelente actor, tinha grande prática de montar peças e dirigir actores: o director de cena do Teatro Nacional D. Maria II, Pedro Lemos. Acompanhado do Mário Cardoso, outro grande entusiasta da ideia, contactámos Pedro Lemos, no seu camarim, e expusemos-lhe a ideia e que só podíamos pagar o mesmo que ganhavam os professores do Centro. Receávamos que não aceitasse por a compensação monetária o não satisfazer, mas mais do que isso o projecto entusiasmou Pedro Lemos que aceitou e abraçou a ideia com um entusiasmo igual ao nosso. O primeiro passo estava dado mas, pretendíamos que os nossos futuros actores tivessem, além de quem os dirigisse e ensaiasse, conhecimentos de caracterização, ballet, esgrima e expressão corporal. Em suma, um pequeno conservatório. Esta ideia teria de marchar mais lentamente e, portanto, limitámo-nos à caracterização e para isso contactei o caracterizador Aguiar de Oliveira que dirigia a principal empresa fornecedora de cabeleiras e postiços para o cinema e os teatros, que existia na Rua do Ouro e de que já não recordo o nome. Tinha grandes conhecimentos e prática pois, além desta actividade, trabalhava como caracterizador no cinema, na televisão e no Teatro S. Carlos. Com ele aprendemos grande parte dos segredos da caracterização e minha mulher tornou-se tão perfeita que o Aguiar de Oliveira a convidou para sua ajudante, no Teatro de S. Carlos durante a temporada de ópera, oferta que, embora lhe agradasse, não aceitou pois era demasiada agarrada ao marido e aos filhos. Depois de uma audição de todos os interessados em representar, em que cada um preparou e disse um trecho escolhido pelo próprio, Pedro Lemos ficou com uma ideia do que possuía e até onde poderia ir. Eu disse “Os Malefícios de Tabaco” de Tchekhov, o melhor que soube mas, confesso, com grande nervosismo pois estava perante um grande mestre de teatro. Satisfeito com o material humano de que dispunha comunicou-nos que para estreia do grupo iríamos apresentar “Breve Sumário da História de Deus” de Gil Vicente e “Arlequim Servidor de Dois Amos” de Carlo Goldoni. Escolha arrojada que nos deixou um pouco atemorizados face a tanta responsabilidade. O “Breve Sumário” era um clássico que, segundo o crítico Redondo Júnior, só devia ser representado por bons actores com longos anos de experiência. O “Arlequim”, peça, que ficou célebre graças à encenação de Giorgio Strehler para o Piccolo Teatro de Milão em 1947, com enredo típico de Commedia dell’Arte, exigia conhecimentos de ballet que nenhum de nós possuía. Graças a alguns meses de trabalho intenso, à aplicação e entusiasmo de todos e aos muitos ensinamentos de Mestre Pedro Lemos, conseguimos uma representação muito boa que seria um êxito se, com estreia já marcada, não tivesse surgido uma contrariedade inesperada a qual poderia ter destruído completamente o trabalho de tantos meses. O “Arlequim” baseava-se num texto traduzido por Luís de Lima que o encenaram e apresentara no CITAC, em Coímbra. Por isso, contactei aquele actor no Estúdio da bailarina Ana Máscolo, onde viera proferir uma palestra, para lhe expor a ideia, pedir para utilizarmos a sua tradução e saber quanto queria de direitos de autor. Simpatiquíssimo, felicitou-me pela ideia que tínhamos tido e como era a estreia de um novo grupo amador teria imenso gosto em colaborar não levando nada de direitos deixando até, no livro da sua tradução que eu levava, um autógrafo desejando “as maiores felicidades para aquela diabólica personagem”. Pensando que todos são como eu, confio nas pessoas pelo que me limitei a mostrar o meu reconhecimento sem lhe pedir qualquer documento escrito. Passado tempo e já com a peça praticamente em condições de ser levada à cena, encontro, na Feira Popular, o actor Carlos Gonçalves que a representara no CITAC. Conversando sobre a mesma e sobre a nossa futura apresentação, ao saber a conversa que eu tivera com Luís de Lima, perguntou-me se tinha, por escrito, a garantia da sua oferta e como eu lhe dissesse que não aconselhou-me a que a conseguisse. Preocupado, escrevi a Luís Lima, que se encontrava então no Porto a dirigir o grupo cénico da Universidade de Direito, a informar do estado em que se encontrava a peça e a pedir a formalização da oferta feita, carta que não obteve qualquer resposta. Entretanto, aquele grupo cénico apresentou-se em Lisboa, no Teatro da Trindade, com duas boas encenações de Ionesco a que assisti e, no final, contactei Luís de Lima. Foi uma triste conversa em que este retirou a oferta que tinha feito com a desculpa que havia oferecido o seu espectáculo a Amélia Rey Colaço, que ela não aceitara e sua aproveitava agora do nosso grupo para a levar á cena no seu teatro, sem qualquer dispêndio. Por mais que lhe explicasse que a D. Amélia Rey Colaço não tinha nada com o Proscenium a não ser ter tido a gentileza de nos ceder o teatro, nada o demoveu e quando eu insisti para que então dissesse quanto queria pelos direitos, respondeu que ainda não sabia mas que iria levar tanto que não permitisse a exibição da peça e que, como iria no dia seguinte para Paris, deixaria o valor ao seu advogado Luís Francisco Rebelo. Ao contactar este, no dia seguinte, mostrou o bom amigo que sempre foi informando-me que o Luís de Lima ainda não lhe dissera quanto queria, mas que iria pedir um valor que não nos permitiria apresentá-la. Apesar de advogado dele, lembrou-me que a peça era do domínio público e que se mudasse uma ou duas frases e lhe desse o nome de um novo tradutor, resolveria o problema. Mas, Pedro Lemos não confiou na mudança de meia dúzia de palavras, face a um indivíduo da índole de Luís de Lima, e disse que se teria de se fazer uma nova tradução, isto a poucas semanas da estreia. De imediato, fui ao Instituto Italiano conseguir a peça, Pedro Lemos traduziu-a em dois dias e aí começaram novos ensaios com um texto novo, difícil de decorar porque tínhamos na cabeça outro praticamente igual. Foi um esforço enorme que contou com a boa vontade e o entusiasmo de todos. Durante duas noites nem consegui dormir e aconselhado a tomar um comprimido para resultar lá tomei não um mas meio de um tal “Calmax” que, apesar de dizerem que era fraquíssimo, me deixou num estado que, durante dois dias, até de pé dormia. Nos preparativos do espectáculo, quando perguntei a Pedro Lemos quanto deveríamos levar no custo dos bilhetes respondeu-me simplesmente: os preços habituais do Nacional. E perante o meu espanto perguntou-me se eu queria desvalorizar já o PROSCENIUM pondo bilhetes mais baratos. A verdade é que, para espanto meu, tirando alguns convites que se tiveram que fazer, os bilhetes venderam-se todos. Na data que fora marcada o PROSCENIUM nasceu, perante uma sala completamente cheia onde predominava o meio de teatro com muitos actores, críticos e autores. O “Sumário” foi um êxito, todos se orgulhando da sua interpretação. O “Arlequim” foi representado com muita dignidade, apesar de tudo o que sofreu, agradando bastante. É verdade que, a partir do segundo acto, já ninguém sabia que tradução estava a dizer mas, como eram semelhantes, não se notava. Em próximo “voando no mundo do teatro” falaremos mais em pormenor deste espectáculo. Por hoje, ficamos com duas imagens finais. O da honra que senti no final do espectáculo, ainda no palco, quando D. Amélia Rey Colaço me veio felicitar pelo êxito alcançado. Deste momento, tinha uma fotografia de que muito gostava mas que, como tudo o resto, ficou em Angola. A outra de alguém, excelente actor, mimo e encenador, que, como artista, muito admiro mas que, como pessoa, me deixou uma muito triste e infeliz recordação: Luís de Lima.

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